Cadê o amor?
Estará meu amor ,
No meu coração,
Espírito ou,
Quem sabe, alma?
Está ardendo como chama,
Está me rasgando como lâmina,
Ou está quebrado como vidro?
Talvez apenas esteja,
Em alguma outra metáfora,
Que repetida tantas vezes
não vale mais nada.
terça-feira, 3 de maio de 2011
segunda-feira, 11 de abril de 2011
A Morte do Pai
Quando Pai morreu, nem todos os filhos choraram. Morto por um de seus filhos, uma tragédia. O Sol se punha no oeste, ou será que estava nascendo? Naquele momento, ninguém parecia reparar nisso. Depois de tantos anos, tantas brigas e tantos amores, o Pai finalmente se fora. Estavam todos órfãos. Sozinhos, sem o pulso forte para guiá-los, o abraço protetor na noite escura, ou o conto de fadas para fazê-los dormir durante a tempestade. Se algum dia tiveram uma Mãe, nunca saberiam, o Pai nunca fora muito chegado a mulheres. Primos, tios, avós? Ninguém. O próprio Pai fora Ele um órfão.
O filho mais velho não chorou. O Pai não estava morto, Ele não podia morrer. Sua morte era uma ilusão, Ele apenas dormia, descansava. Nunca aceitaria fim tão súbito, tão repentino e inglório, sem sequer um abraço de adeus. Idolatrava o seu velho Pai, Ele era tudo para ele. Toda sua vida se moldara por Ele, sacrificara tudo por Ele. Via na Sua imagem o que há mais de sublime, mais belo e mais perfeito, seguia Sua palavra nos mínimos detalhes. Obedecera-O em tudo, moldara a si próprio, dos seus pensamentos ao seu corpo, por essa obediência, fora de todo o filho mais exemplar e talvez o mais querido. Nunca suportaria a dor de perdê-Lo, pois O perdendo perderia a si próprio.
Mas no seu íntimo, por mais que negasse, não podia esquecer o cadáver frio diante de si. Ali havia uma sombra de dúvida, que por vezes perpassava seu pensamento, corroia-os de leve e por fim se vestia de remorso. E na dor roxa do remorso, esses pensamentos fugiam ou se escondiam. Assim, continuou dirigindo ao Pai suas súplicas, e era Nele que pensava nas noites frias. Via seu fantasma em todos os lugares, no quebrar das ondas na areia, ou no sorriso da lua nas noites mais brilhantes. Dizia até que conseguia ouvir-lhe a voz, quando o silêncio caía sobre o mundo e sua mente se esforçava. Saiu pelas ruas conclamando em altos berros que o Pai não morreria, que fora e seria eterno. Muitos dos órfãos do mundo o seguiram e acreditaram. Muitos dos que nunca tiveram pai, muitos do que haviam negado os seus. Todos seriam adotados, todos teriam seu lugar. E Ele os protegeria, e os educaria, o filho obediente sempre teria seu lugar guardado. No filho mais velho miraram seu exemplo, e o seguiram em sua loucura.
E quando os outros os chamavam de louco, e com coragem lhe diziam a verdade na cara, eles os o odiavam, porque por mais que em seus lábios e consciências o Pai ainda vivesse, a dúvida sempre se insinuava, em algum reflexo no espelho ou em algum pensamento mal-quisto. Afastaram-se dos seus outros irmãos, não queiram nada com eles, “Vocês querem nos afastar do Pai! querem que Ele nos odeie!” E quando lhe perguntavam: Mas então onde está o Pai afinal? Ora está aqui, não está acolá, outro dizia: É claro que só pode estar aqui! Pelo visto o Pai se mudara para os olhos de cada um, e desse jeito nada poderia ser feito. Com o tempo a própria lembrança do Pai foi evanescendo, tal como os restos da chuva quando o Sol aparece. As palavras do Pai tornaram-se as palavras dos filhos, o que se dizia sobre o Pai acabou-se por tornar-se o próprio Pai. Do Seu rosto, talvez só as estrelas se lembrassem.
A filha mais velha chorava, lamentos altos e assustadores. Suas lágrimas eram frias como o medo, ela amara seu velho Pai, amara-o muito, um amor ferroso, coroado pelo respeito e pela distância. Sentia falta do Seu abraço protetor, de Suas palavras, da forma como ele espantava seus medos com um simples sorriso. Mas em seu coração, em algum compartimento mais oculto, se agitava uma sensação suave, trêmula... algo como uma brisa em um dia quente...algo como alivio?
Com o Pai se fora seu porto seguro, seu protetor, mas também os olhares severos, as regras rígidas, a forma como ele se ria dela às vezes, a forma como ele a colocava diante dos irmãos. Tudo que ela sabia fora que o Pai que lhe ensinara, e o mais valioso ensinamento, fora o vermelho da vergonha, o vermelho por ter em si um útero, o vermelho que lhe cobria como um véu e que ela aprendera a aceitar e respeitar com veemência sacra, por mais que no fundo nunca de fato o entendesse. E nisso, estava seu tímido alivio, que com medo seu espírito forçava por calar, uma represa para um rio do qual ela receava a correnteza.
Chegando em casa, olhou-se no espelho. Não era ela que estava refletida ali, o que via era o amorfo de uma vermelhidão, tocada pela luz do Sol dúbio lá fora, e quando olhou pela janela, os raios de luz lhe disseram que era o nascer do dia. Então, lhe acometeu um agitar-se de bravura, agitar novo em seu coração de cabeça baixa, e em um movimento brusco e rápido, despiu-se, um mar de panos caindo no chão, levantando para o céu em desafio o pó avermelhado de tantas eras. Pela primeira vez nua. Nua, e mais do que nua, bela, nos seus lábios uma frase se insinuou e com força lançou-se para fora: Sou mulher! Era mulher e o peso dessa súbita revelação, sim, sou mulher, o peso caiu sobre ela como a primavera cai raivosa sobre o inverno. Gritou para o Sol lá fora, e ele sorriu. Sou mulher, sou bela, sou mulher. Ergueu as mãos lentamente, tocou-se, explorou o mistério de si própria, de sua carne, de sua pele, o maior de todos os mistérios, escondido por tanto tempo. Deliciou-se no sabor do novo, entregou-se ao êxtase daquilo que sempre a precedera, daquilo que sempre caminhou com ela, mas na covardia de tantas correntes, mantivera preso, incapaz da coragem que era encontrar-se. Sou mulher, gritou, os mantos rubros caídos no chão, nua, sem a vergonha pra lhe cobrir o corpo, sem o medo para lhe agraciar com pudor.
Então foi até o pomar e lá comeu todas as maçãs que viu. Deliciou-se na lascívia do fruto por tanto tempo proibido, solvendo com graça seu gosto vermelho, um novo vermelho, agora cor de sangue, cor do sangue secreto que corre debaixo da pele. Comeu até não mais agüentar, e saciada deitou-se no chão verde, ouvindo embaixo de si o suspiro doce da Terra, ela própria uma mulher, a mais velha e calejada de todas. Embalada pela graça desse som, deixou-se levar pelo caminhar das horas, deixando com que o Sol finalmente apreciasse sua nudez, que espalhasse sobre ela sua mão quente, que levasse embora as teias de escuridão que se escondiam em seu corpo.
Surgiu um homem no pomar, e ele tremeu diante da mulher nua. Ele próprio conhecera o Pai, e algo lhe fora dito sobre os perigos do que brilha em nudez. Ela o viu, e levantou-se. Caminhou até ele, altiva como uma rainha, seus olhos mais sedutores do que qualquer serpente. Alcançou-o, e no silêncio do temor que o fazia hesitar, ela tocou-o sem receio ou vergonha. Sentiu nele a beleza do homem, sem a máscara dura dos olhos do Pai, sem o medo que um homem deveria inspirar. Possuiu-o, devorou-o, fez dele o seu homem. Amaram-se ao pé da macieira, e até mesmo esta se encantou com os dois.
A mulher descobriu o amor e o apresentou ao homem. E juntos descobriram a felicidade. Saíram juntos pelo mundo, experimentando dos mais rudes aos mais sofisticados prazeres. Acabaram por se separar em alguma esquina do tempo, e ela seguiu sozinha em seu caminho. O mundo era belo, era pulsar quente de vida, era pura música, música tocada por uma orquestra de infinitos músicos, que com as cordas do tempo faziam do mundo seu instrumento. Assim, como quem dança, ela seguiu seu caminho. E nele, experimentou outros homens, e também outras mulheres, conheceu o amor na diversidade de suas formas, de seus gostos. O amor no brotar das flores na primavera, o amor no toque do outro em seus cabelos, o amor do pássaro que ensina seus filhos a voarem, o amor nas mesas de bar, o amor em ser mulher, o amor de mesmo sendo mulher ainda poder ser homem, o amor que se põem junto com o Sol e volta junto com a Lua, o amor por um único, o amor por vários, o amor das mulheres, o amor dos homens. E não vou dizer que não houve dores, tristezas, desilusões. Mas em cada rosa há sempre um espinho, cada dor era um prenúncio de nova alegria, cada sonho desfeito era tijolo para um novo sonho, e assim ela viveu. Cada dia era uma nova aventura, cada nascer do Sol uma nova emoção, cada gosto, cada cheiro, cada desejo. Algumas vezes encontrou seu irmão mais velho, que lhe gritava insultos e lhe rogava pragas. Ela ria, apenas ria, e até mesmo sentia pena do seu pobre irmão, insano e já tão velho.
E assim houve um dia como outro qualquer, em que o tempo finalmente deixou cair sobre ela seu peso. Cansada, deixou-se cair sobre o colo da terra, e mais alto do que nunca ouviu a música que vinha do mundo. Nesse instante, espremida entre o Céu e a Terra, com o Sol como única testemunha, ela se tornou Mãe.
Um dos gêmeos também chorava. Pobre criança que era, sempre tão mimado pelo Pai, tão dependente de Sua onipresente orientação! Como poderia viver sem alguém para lhe perdoar quando errasse? Para guiá-lo quando se perdesse? Era jovem, e até mesmo ingênuo, mas por mais que em algum momento tenha tentado, não conseguiu abandonar-se ao sonho, a loucura, como seu irmão mais velho fizera. E assim, o cinza do luto caiu sobre o mundo, todas as cores mortas junto com o Pai.
De súbito sua existência perdera o rumo, perdera o braço forte que sempre lhe guiara, e em seu espírito não havia força o suficiente para que andasse só. Tudo ao redor guardara uma marca do Pai, uma lembrança doce e bem guardada, um ensinamento sobre isso ou aquilo. E isso lhe doía, lhe enchia de pavor, pois sabia que seus passos não teriam mais rumo. Mas seu coração era jovem e quente, e mesmo com a bússola quebrada, resolveu fugir, deixando para trás a existência que conhecia, maculada pela lembrança do Pai. Desafiou com impertinência o medo que sentia, o medo do andar desnorteado, o medo da liberdade daquele que não tem mais mestre, e coberto de desespero, jogou-se ao encontro desse mesmo medo, perdido lançando-se á perdição.
Caminhou muito, por terras próximas e distantes, indiferente ao sol e a lua. Aos que o vissem diriam que não passava de uma reles sombra se esgueirando sobre a terra, vestido em melancolia, manchando a paisagem com um borrão sinistro. E não muito diferente era como ele próprio se via, calçado em dor, deixava com que os sapatos levassem seus pés, em um mundo estéril de som e de musica.
Mas soube a sorte, por piedade ou por tédio, fazê-lo chegar a uma terra de Sol forte e ventos afiados, onde entre seus olhos turvos de lágrimas secas, acabou por avistar homens morenos, de roupas estranhas. Aproximou-se tímido, observou-os ao longe. Esses homens tinham um Pai, como ele próprio tivera um dia, e ele pôde ver a forma como eles o reverenciavam, a forma como dirigiam a Ele suas súplicas, a forma como Ele cuidava deles. E meu deus, como Ele era parecido com seu próprio Pai! Seria algum tio seu, primo ou quem sabe avô? A semelhança fez com que seu coração gritasse, um grito libertador de esperança em um espírito que já parecia ter desistido.
Com coragem largou seu esconderijo, e foi em direção aquela família estranha, todo seu espírito esperando de alguma forma ser aceito, poder compartilhar da presença daquele Pai tão parecido com o seu próprio, e quem sabe até mesmo ser adotado. Porém, foi recebido com desconfiança e escárnio, palavras rudes e gestos agressivos. Implorava por uma chance, “Deixem-me ficar um pouco com vocês, sou órfão e só queria me lembrar por um instante como é ter família!” E o enxotaram , e o humilharam. “Sou como vocês! Quem sabe não somos até mesmo parentes? Em vão, não o ouviam, não o entendiam e nem queriam entender.
Foi então que o Pai viu o que se passava, e apareceu diante dos filhos, e disse-lhes, para que aceitassem o recém-chegado “ No coração de um Pai devem ser recebidos todos os que quiserem entrar”, e com relutância os irmãos o deixaram em paz. Ficou com eles, estabeleceu-se naquela terra árida, e lá aprendeu seus hábitos, sua essência. Amou o novo Pai, Ele também o amou, e cada vez mais Ele lhe lembrava o seu próprio, nas palavras, nos gestos, nas ordens. Com o tempo acabou por ser plenamente aceito, e ninguém mais se lembrava de que um dia ele fora um estrangeiro. A memória de seu próprio Pai, há tanto tempo falecido, acabou por fundir-se na presença de seu novo Pai, acabando ele por esquecer que não fora naquela família que nascera.
O outro gêmeo não chorava. Não que não sofresse, mas apenas o luto assustara suas lágrimas e elas preferiram timidamente permanecer nas pálpebras. Ele era tão parecido com seu irmão gêmeo, tão imaturo, tão mimado! Não desenvolvera em si o hábito da decisão, o gosto pela independência, pobre ovelha que era, agora sem seu pastor. Mas ao passo que o espírito de seu irmão era fogo, o dele era mais como a água, e não lhe houve instinto ou força para que fizesse caminhar. O mundo era escuro como o luto, e ele também se tornou assim.
Foi para casa, o seu norte ainda aparecia na bússola quebrada. De lá nunca mais saiu. Sentou-se na sua cadeira favorita, no centro da sala. A dor tornara-se tão intensa, corria nos seus ossos, lhe tomava a pele. O Pai fora pra ele o caminho, sua mensagem, seu comando e afeto abundara em tudo que existia, cada pensamento seu fora de alguma tocado e moldado por Ele. Perdendo a Ele, perdera a si próprio, e por azar também não tinha talento para a loucura, não poderia negar nunca a morte que lhe saltara aos olhos e ao espírito.
Então se entregou a dor, ao pesar. Estava diante do abismo, e ele lhe sorria, o que mais poderia fazer senão se jogar? E se jogou na mais profunda dor e para protegê-la cercou-se de muros de solidão. Viu de sua janela seus outros irmãos, e percebeu que os desprezava. O mundo de fora estava infectado pela falta de significado, sem o Pai cada movimento perdera seu guia, tornara-se fútil negação, toda a vida perdera seu sentido, qualquer coisa que se pudesse fazer, tudo era futilidade, era mentir. Sem o Pai o mundo perdera seu mastro fixo, tornara-se efêmero suceder de momentos vazios e etéreos. Eram todos tolos, tolos ao declamaram sua loucura, tolos ao se entregarem a ilusão do amor, tolos ao respirar e tolos ao dormir, e assim os desprezava. Um dia parou até mesmo de olhar a janela. Tamanho se tornou seu luto, que nem mais os raios de luz tinham coragem de entrar, e a escuridão da noite assustou-se com sua negritude.
Porém, a própria dor com o tempo foi se cansando de existir, a dor era tão fútil quanto todo o resto, ele pôde entender. Os gritos sufocantes de seu espírito tornaram-se suspiros, a dor esganiçada tornou-se complacência, e o luto tornou-se inércia. A dor que como dor ainda era vida, ainda era revolta, movimento, resolveu abandoná-lo. A aceitação plena, sincera e absoluta do sofrimento , do absurdo que era a vida sem o Pai, tal como uma estrela em ebulição flamejante se torna um buraco negro, transformara-se em um vazio profundo, mais do que um vazio que em si é uma ausência,mas sim,o Nada, indajeticvável Nada .No Nada o mundo deixou de ser o mundo, a dor deixou de ser dor, a efemeridade de ser efêmera. Encontrou então, a Paz, mas paz não seria a palavra adequada, nem felicidade, tranqüilidade ou calma. Acredito que não exista palavra para descrever o que ele sentiu, talvez somente o mais asceta dos monges possa entender. Ao compreender dentro de si o Nada, ele tornou-se Nada. Os dias vieram e passaram, as noites e as manhãs, e por fim levaram de seus ossos as carnes, de suas veias o sangue, da sua vida o sopro. Porém, quando seu corpo finalmente pereceu, há muito tempo que já não estava mais lá.
O Pai fora morto por um de seus filhos. O filho mais novo, o caçula, criança arteira e curiosa. Sempre importunando o Pai com um sem fim de pergunta, porque assim e não daquele jeito? , por que a vida e por que a morte, por quê? Tinha no seu espírito ímpeto aventureiro, um espírito artístico de grande criatividade. Adorava jogos de imaginação, brincar de faz-de-conta, desenhar, escrever historinhas. Sua atividade preferida era esculpir no barro ou na argila, pequenas estátuas, bonecos, objetos engenhosos e abstratos, o que quer que surgisse em sua imaginação. Gostava principalmente do barro, porque certa vez quando era ainda bem criança, o Pai lhe contara que ele e seus irmãos haviam todos nascidos dessa substância, esculpidos por Sua mão. Esse pequeno conto, ele o achava de excepcional beleza e fermentava sua imaginação. A possibilidade de criar o fascinava, e mais ainda a esperança infantil que uma de suas humildes esculturas algum dia ganhassem vida, e saíssem pelo mundo voando, nadando. O Pai aprovava esses feitos imaginativos, mas algumas vezes procurava impor limites às idéias do filho, mas no final acabava por apreciar os resultados.
Entretanto o caçula às vezes desobedecia ao Pai, olhando onde não devia, saindo de casa escondido, perguntando sobre aquilo que não deveria ser perguntado. Era rebelde, não entendia a rigidez do “Por que sim, por que não”, preferia o lobo a ovelha. Achava engraçada a submissão temerosa de seus irmãos, a vocação que tinham para escravos, e o prazer que pareciam sentir nisso. Mas mesmo rebelde ainda era amado por seus irmãos, e o Pai, por mais severo que fosse, ainda brincava com ele, lhe dava alguns doces de vez em quando, respondia algumas de suas perguntas mais simples.
Não vou dizer que não amava o Pai, esse pequeno assassino, mas seu amor era diferente. Não era o amor de um cão por seu dono, mas o amor daquele que admira, o amor daquele que com silenciosa e respeitosa inveja, deseja torna-se igual. Tinha seu Pai como modelo, como exemplo, mas não suas palavras, ditos, ordens, ensinamentos, mas sim Ele próprio, seu poder, sua sabedoria.
O Pai tinha uma caixa guardada, proibido a qualquer um dela se aproximar, lá Ele guardava seu maior Segredo. Dizia-se que o primeiro de todos os seus filhos, um dia havia tentado se aproximar dessa caixa, e por pouco não conseguiu, tendo o Pai ao descobrir, o banido para sempre como traidor, tirando dele até mesmo o direito de se considerar Seu filho. Esse desgarrado, pelo que se dizia , havia vagado pelo mundo em remorso, até achar refúgio em algum lugar debaixo da terra, onde longe do amor do Pai, havia se tornado um monstro terrível, com chifres e tudo. Essa história contada pelo Pai, junto com todos outros contos de bicho-papão e homem-do-saco, havia espalhado terror e receio entre todos os irmãos, mas o caçula por mais que com elas se assustasse, sempre suspeitara que eram nada mais do que simples histórias. E tinha grande curiosidade de um dia abrir essa caixa, descobrir finalmente o segredo que o Pai tanto escondia, desvelar a distância que O separava de seus filhos.
Então, com excepcional irresponsabilidade, o filho mais novo, um dia foi até os aposentos do Pai, determinado a finalmente descobrir tal segredo. Aproximou-se da caixa, o peito pulsando rápido, suor gélido brotando de sua pele. Suas mãozinhas tremeram ao tocar na tampa da caixa, ela parecia tão velha quando o próprio mundo, a palavra “Verdade” escrita nela. Ele estava apavorado. Mas não poderia parar uma vez indo tão longe, e então a abriu. Durante um mínimo segundo olhou para o lado, ao tempo de ver o Pai na soleira da porta.
O filho mais novo chorava no enterro do Pai. Um choro quieto e envergonhado. Nunca imaginara as conseqüências de seu ato, nunca imaginaria que por uma simples caixa seu Pai morreria assim, como que atingido por um raio, do nada. Mas ele vira o Seu segredo, e ele o carregava consigo. A excitação da sua descoberta, por mais que ele nem para si próprio admitisse, em muito superava seus sentimentos de remorso e perda. Inclinado para o futuro que o esperava, não conseguia sofrer tanto pelo que ficara para trás. O que ele vira na caixa era algo que só ele poderia ver, algo que falara fortemente a seu espírito, como um chamado ou um grande desafio Um pintor veria um pincel e uma tela; um escritor, papel e lápis; a criança viu seu brinquedo favorito, veículo de sua imaginação: o barro.
E com ele o filho mais novo modelou no mundo o próprio mundo, dando a ele seu espírito, sua mente fervilhante em um incêndio de novas idéias. Tudo parecia diferente, tudo possuía em si uma novidade, tudo era matéria para seu espírito criador. Deu a cada coisa um número, um peso, um valor, uma quantidade. Criou inúmeras relações: da água que cai na chuva a que jaz no mar, do movimento da terra a posição das estrelas, do bater de asas de uma borboleta ao poder de um furacão. Catalogou todos os animais, criou olhos capazes de ver as mínimas criaturas, deu a cada coisa uma função, deu um porque ao respirar das árvores, ao bater do coração.
Mais do que isso, criou artefatos, antigo sonho de criança de ver vivo o que seu espírito modelava. Artefatos que o fizeram voar mais rápido do que um pássaro, e ir tão fundo nos mares que nem o Sol ousava acompanhá-lo. Foi até mesmo a Lua, e lá viu a Terra como só as estrelas a viam. Conseguiu curar doenças antes mesmo delas se manifestarem, fazer alguns cegos enxergarem, alguns coxos andarem, alguns surdos ouvirem. Mas também criou novas enfermidades, novas armas, e o mais terrível de seus brinquedos, capaz de com um simples movimento, destruir qualquer cidade, em qualquer lugar.
Ele havia crescido, se tornado homem adulto, forte e saudável, cada vez mais poderoso, cada vez mais parecido com o Pai. Muitos o seguiram, admirados por suas realizações, e os que o temiam também o seguiram por temor. Embora muito do que criasse, fosse inspirado no rosto de seu Pai, na suas idéias, negava tudo o que Ele um dia dissera. E como o falecido não poderia defender-se, tornou-Se esquecido e desacreditado.
Porém, o irmão mais velho nunca esqueceria o Pai, ou pelo menos a imagem que sua mente dele fizera, e com ódio e desconfiança ele observava o seu irmão mais novo, suspeitando de que por culpa dele que o Pai dormia há tanto tempo. Procurou destruir tudo que ele criava, brigaram seriamente, chegando mesmo as vias de fato. Esqueceram por completo que tinham tido as mesmas origens, que eram irmãos. Agora eram inimigos, ora lutando, ora em trégua. Mas com o tempo, o pobre velho não pode mais enfrentar a força juvenil de seu irmão, e desacreditado por tudo e por todos, isolou-se do mundo. Aos olhos deste passou a ser visto apenas como uma curiosidade, uma lembrança interessante de um tempo felizmente já acabado.
Mas eis que o caçula tem seus próprios filhos, e agora ele era Pai. Dizem que os filhos reproduzem em seus rebentos, o mesmo comportamento que seus pais tiveram com eles. O Pai não era diferente, agindo com Seus filhos, como Seu próprio pai agira com Ele, dando-lhes ordens, impondo-lhes comportamentos, idéias, e principalmente mantendo oculto deles o Segredo que há tanto tempo roubara de certa caixa. Também consolava Seus filhos em noites tempestuosas, mas não com conto-de-fadas, mas com o que Ele chamava de Fato, criação Sua muito em voga e bem aceita. Orientava Suas crianças, dava-lhes um caminho, uma bússola e um sentido, tal como Seu pai fizera, apenas mudando as palavras, o conteúdo, o método. Era muito amado, muito respeitado, todos recorriam a Ele, o mundo era Seu.
Houve então, de um de Seus filhos, de todos o que mais se parecia com Ele, ter igualmente tanta curiosidade, e tão pouca vocação para verdades prontas quanto Ele tivera um dia. Era criativo, rebelde, original, curioso. Mas por mais insubordinado que fosse, louco segundo algum de seus irmãos, admirava seu Pai a cima de tudo, e sonhava em um dia ser como Ele, colocar-se como igual perante Sua presença, ser tão amado como Ele o era. Levado pela curiosidade acabou descobrindo que o Pai guardava um grande Segredo, em uma caixa muito velha, herança de algum avô desconhecido. Não sossegaria até achá-la e ver o que tinha dentro. Acabou achando a tal caixa. Abriu-a sem que o Pai vesse, e surpreendeu-se mais do que jamais imaginara com o que encontrou lá dentro.
Quando o Pai morreu nem todos os filhos choravam. O Sol se punha no horizonte, ou será que estava nascendo?
O filho mais velho não chorou. O Pai não estava morto, Ele não podia morrer. Sua morte era uma ilusão, Ele apenas dormia, descansava. Nunca aceitaria fim tão súbito, tão repentino e inglório, sem sequer um abraço de adeus. Idolatrava o seu velho Pai, Ele era tudo para ele. Toda sua vida se moldara por Ele, sacrificara tudo por Ele. Via na Sua imagem o que há mais de sublime, mais belo e mais perfeito, seguia Sua palavra nos mínimos detalhes. Obedecera-O em tudo, moldara a si próprio, dos seus pensamentos ao seu corpo, por essa obediência, fora de todo o filho mais exemplar e talvez o mais querido. Nunca suportaria a dor de perdê-Lo, pois O perdendo perderia a si próprio.
Mas no seu íntimo, por mais que negasse, não podia esquecer o cadáver frio diante de si. Ali havia uma sombra de dúvida, que por vezes perpassava seu pensamento, corroia-os de leve e por fim se vestia de remorso. E na dor roxa do remorso, esses pensamentos fugiam ou se escondiam. Assim, continuou dirigindo ao Pai suas súplicas, e era Nele que pensava nas noites frias. Via seu fantasma em todos os lugares, no quebrar das ondas na areia, ou no sorriso da lua nas noites mais brilhantes. Dizia até que conseguia ouvir-lhe a voz, quando o silêncio caía sobre o mundo e sua mente se esforçava. Saiu pelas ruas conclamando em altos berros que o Pai não morreria, que fora e seria eterno. Muitos dos órfãos do mundo o seguiram e acreditaram. Muitos dos que nunca tiveram pai, muitos do que haviam negado os seus. Todos seriam adotados, todos teriam seu lugar. E Ele os protegeria, e os educaria, o filho obediente sempre teria seu lugar guardado. No filho mais velho miraram seu exemplo, e o seguiram em sua loucura.
E quando os outros os chamavam de louco, e com coragem lhe diziam a verdade na cara, eles os o odiavam, porque por mais que em seus lábios e consciências o Pai ainda vivesse, a dúvida sempre se insinuava, em algum reflexo no espelho ou em algum pensamento mal-quisto. Afastaram-se dos seus outros irmãos, não queiram nada com eles, “Vocês querem nos afastar do Pai! querem que Ele nos odeie!” E quando lhe perguntavam: Mas então onde está o Pai afinal? Ora está aqui, não está acolá, outro dizia: É claro que só pode estar aqui! Pelo visto o Pai se mudara para os olhos de cada um, e desse jeito nada poderia ser feito. Com o tempo a própria lembrança do Pai foi evanescendo, tal como os restos da chuva quando o Sol aparece. As palavras do Pai tornaram-se as palavras dos filhos, o que se dizia sobre o Pai acabou-se por tornar-se o próprio Pai. Do Seu rosto, talvez só as estrelas se lembrassem.
A filha mais velha chorava, lamentos altos e assustadores. Suas lágrimas eram frias como o medo, ela amara seu velho Pai, amara-o muito, um amor ferroso, coroado pelo respeito e pela distância. Sentia falta do Seu abraço protetor, de Suas palavras, da forma como ele espantava seus medos com um simples sorriso. Mas em seu coração, em algum compartimento mais oculto, se agitava uma sensação suave, trêmula... algo como uma brisa em um dia quente...algo como alivio?
Com o Pai se fora seu porto seguro, seu protetor, mas também os olhares severos, as regras rígidas, a forma como ele se ria dela às vezes, a forma como ele a colocava diante dos irmãos. Tudo que ela sabia fora que o Pai que lhe ensinara, e o mais valioso ensinamento, fora o vermelho da vergonha, o vermelho por ter em si um útero, o vermelho que lhe cobria como um véu e que ela aprendera a aceitar e respeitar com veemência sacra, por mais que no fundo nunca de fato o entendesse. E nisso, estava seu tímido alivio, que com medo seu espírito forçava por calar, uma represa para um rio do qual ela receava a correnteza.
Chegando em casa, olhou-se no espelho. Não era ela que estava refletida ali, o que via era o amorfo de uma vermelhidão, tocada pela luz do Sol dúbio lá fora, e quando olhou pela janela, os raios de luz lhe disseram que era o nascer do dia. Então, lhe acometeu um agitar-se de bravura, agitar novo em seu coração de cabeça baixa, e em um movimento brusco e rápido, despiu-se, um mar de panos caindo no chão, levantando para o céu em desafio o pó avermelhado de tantas eras. Pela primeira vez nua. Nua, e mais do que nua, bela, nos seus lábios uma frase se insinuou e com força lançou-se para fora: Sou mulher! Era mulher e o peso dessa súbita revelação, sim, sou mulher, o peso caiu sobre ela como a primavera cai raivosa sobre o inverno. Gritou para o Sol lá fora, e ele sorriu. Sou mulher, sou bela, sou mulher. Ergueu as mãos lentamente, tocou-se, explorou o mistério de si própria, de sua carne, de sua pele, o maior de todos os mistérios, escondido por tanto tempo. Deliciou-se no sabor do novo, entregou-se ao êxtase daquilo que sempre a precedera, daquilo que sempre caminhou com ela, mas na covardia de tantas correntes, mantivera preso, incapaz da coragem que era encontrar-se. Sou mulher, gritou, os mantos rubros caídos no chão, nua, sem a vergonha pra lhe cobrir o corpo, sem o medo para lhe agraciar com pudor.
Então foi até o pomar e lá comeu todas as maçãs que viu. Deliciou-se na lascívia do fruto por tanto tempo proibido, solvendo com graça seu gosto vermelho, um novo vermelho, agora cor de sangue, cor do sangue secreto que corre debaixo da pele. Comeu até não mais agüentar, e saciada deitou-se no chão verde, ouvindo embaixo de si o suspiro doce da Terra, ela própria uma mulher, a mais velha e calejada de todas. Embalada pela graça desse som, deixou-se levar pelo caminhar das horas, deixando com que o Sol finalmente apreciasse sua nudez, que espalhasse sobre ela sua mão quente, que levasse embora as teias de escuridão que se escondiam em seu corpo.
Surgiu um homem no pomar, e ele tremeu diante da mulher nua. Ele próprio conhecera o Pai, e algo lhe fora dito sobre os perigos do que brilha em nudez. Ela o viu, e levantou-se. Caminhou até ele, altiva como uma rainha, seus olhos mais sedutores do que qualquer serpente. Alcançou-o, e no silêncio do temor que o fazia hesitar, ela tocou-o sem receio ou vergonha. Sentiu nele a beleza do homem, sem a máscara dura dos olhos do Pai, sem o medo que um homem deveria inspirar. Possuiu-o, devorou-o, fez dele o seu homem. Amaram-se ao pé da macieira, e até mesmo esta se encantou com os dois.
A mulher descobriu o amor e o apresentou ao homem. E juntos descobriram a felicidade. Saíram juntos pelo mundo, experimentando dos mais rudes aos mais sofisticados prazeres. Acabaram por se separar em alguma esquina do tempo, e ela seguiu sozinha em seu caminho. O mundo era belo, era pulsar quente de vida, era pura música, música tocada por uma orquestra de infinitos músicos, que com as cordas do tempo faziam do mundo seu instrumento. Assim, como quem dança, ela seguiu seu caminho. E nele, experimentou outros homens, e também outras mulheres, conheceu o amor na diversidade de suas formas, de seus gostos. O amor no brotar das flores na primavera, o amor no toque do outro em seus cabelos, o amor do pássaro que ensina seus filhos a voarem, o amor nas mesas de bar, o amor em ser mulher, o amor de mesmo sendo mulher ainda poder ser homem, o amor que se põem junto com o Sol e volta junto com a Lua, o amor por um único, o amor por vários, o amor das mulheres, o amor dos homens. E não vou dizer que não houve dores, tristezas, desilusões. Mas em cada rosa há sempre um espinho, cada dor era um prenúncio de nova alegria, cada sonho desfeito era tijolo para um novo sonho, e assim ela viveu. Cada dia era uma nova aventura, cada nascer do Sol uma nova emoção, cada gosto, cada cheiro, cada desejo. Algumas vezes encontrou seu irmão mais velho, que lhe gritava insultos e lhe rogava pragas. Ela ria, apenas ria, e até mesmo sentia pena do seu pobre irmão, insano e já tão velho.
E assim houve um dia como outro qualquer, em que o tempo finalmente deixou cair sobre ela seu peso. Cansada, deixou-se cair sobre o colo da terra, e mais alto do que nunca ouviu a música que vinha do mundo. Nesse instante, espremida entre o Céu e a Terra, com o Sol como única testemunha, ela se tornou Mãe.
Um dos gêmeos também chorava. Pobre criança que era, sempre tão mimado pelo Pai, tão dependente de Sua onipresente orientação! Como poderia viver sem alguém para lhe perdoar quando errasse? Para guiá-lo quando se perdesse? Era jovem, e até mesmo ingênuo, mas por mais que em algum momento tenha tentado, não conseguiu abandonar-se ao sonho, a loucura, como seu irmão mais velho fizera. E assim, o cinza do luto caiu sobre o mundo, todas as cores mortas junto com o Pai.
De súbito sua existência perdera o rumo, perdera o braço forte que sempre lhe guiara, e em seu espírito não havia força o suficiente para que andasse só. Tudo ao redor guardara uma marca do Pai, uma lembrança doce e bem guardada, um ensinamento sobre isso ou aquilo. E isso lhe doía, lhe enchia de pavor, pois sabia que seus passos não teriam mais rumo. Mas seu coração era jovem e quente, e mesmo com a bússola quebrada, resolveu fugir, deixando para trás a existência que conhecia, maculada pela lembrança do Pai. Desafiou com impertinência o medo que sentia, o medo do andar desnorteado, o medo da liberdade daquele que não tem mais mestre, e coberto de desespero, jogou-se ao encontro desse mesmo medo, perdido lançando-se á perdição.
Caminhou muito, por terras próximas e distantes, indiferente ao sol e a lua. Aos que o vissem diriam que não passava de uma reles sombra se esgueirando sobre a terra, vestido em melancolia, manchando a paisagem com um borrão sinistro. E não muito diferente era como ele próprio se via, calçado em dor, deixava com que os sapatos levassem seus pés, em um mundo estéril de som e de musica.
Mas soube a sorte, por piedade ou por tédio, fazê-lo chegar a uma terra de Sol forte e ventos afiados, onde entre seus olhos turvos de lágrimas secas, acabou por avistar homens morenos, de roupas estranhas. Aproximou-se tímido, observou-os ao longe. Esses homens tinham um Pai, como ele próprio tivera um dia, e ele pôde ver a forma como eles o reverenciavam, a forma como dirigiam a Ele suas súplicas, a forma como Ele cuidava deles. E meu deus, como Ele era parecido com seu próprio Pai! Seria algum tio seu, primo ou quem sabe avô? A semelhança fez com que seu coração gritasse, um grito libertador de esperança em um espírito que já parecia ter desistido.
Com coragem largou seu esconderijo, e foi em direção aquela família estranha, todo seu espírito esperando de alguma forma ser aceito, poder compartilhar da presença daquele Pai tão parecido com o seu próprio, e quem sabe até mesmo ser adotado. Porém, foi recebido com desconfiança e escárnio, palavras rudes e gestos agressivos. Implorava por uma chance, “Deixem-me ficar um pouco com vocês, sou órfão e só queria me lembrar por um instante como é ter família!” E o enxotaram , e o humilharam. “Sou como vocês! Quem sabe não somos até mesmo parentes? Em vão, não o ouviam, não o entendiam e nem queriam entender.
Foi então que o Pai viu o que se passava, e apareceu diante dos filhos, e disse-lhes, para que aceitassem o recém-chegado “ No coração de um Pai devem ser recebidos todos os que quiserem entrar”, e com relutância os irmãos o deixaram em paz. Ficou com eles, estabeleceu-se naquela terra árida, e lá aprendeu seus hábitos, sua essência. Amou o novo Pai, Ele também o amou, e cada vez mais Ele lhe lembrava o seu próprio, nas palavras, nos gestos, nas ordens. Com o tempo acabou por ser plenamente aceito, e ninguém mais se lembrava de que um dia ele fora um estrangeiro. A memória de seu próprio Pai, há tanto tempo falecido, acabou por fundir-se na presença de seu novo Pai, acabando ele por esquecer que não fora naquela família que nascera.
O outro gêmeo não chorava. Não que não sofresse, mas apenas o luto assustara suas lágrimas e elas preferiram timidamente permanecer nas pálpebras. Ele era tão parecido com seu irmão gêmeo, tão imaturo, tão mimado! Não desenvolvera em si o hábito da decisão, o gosto pela independência, pobre ovelha que era, agora sem seu pastor. Mas ao passo que o espírito de seu irmão era fogo, o dele era mais como a água, e não lhe houve instinto ou força para que fizesse caminhar. O mundo era escuro como o luto, e ele também se tornou assim.
Foi para casa, o seu norte ainda aparecia na bússola quebrada. De lá nunca mais saiu. Sentou-se na sua cadeira favorita, no centro da sala. A dor tornara-se tão intensa, corria nos seus ossos, lhe tomava a pele. O Pai fora pra ele o caminho, sua mensagem, seu comando e afeto abundara em tudo que existia, cada pensamento seu fora de alguma tocado e moldado por Ele. Perdendo a Ele, perdera a si próprio, e por azar também não tinha talento para a loucura, não poderia negar nunca a morte que lhe saltara aos olhos e ao espírito.
Então se entregou a dor, ao pesar. Estava diante do abismo, e ele lhe sorria, o que mais poderia fazer senão se jogar? E se jogou na mais profunda dor e para protegê-la cercou-se de muros de solidão. Viu de sua janela seus outros irmãos, e percebeu que os desprezava. O mundo de fora estava infectado pela falta de significado, sem o Pai cada movimento perdera seu guia, tornara-se fútil negação, toda a vida perdera seu sentido, qualquer coisa que se pudesse fazer, tudo era futilidade, era mentir. Sem o Pai o mundo perdera seu mastro fixo, tornara-se efêmero suceder de momentos vazios e etéreos. Eram todos tolos, tolos ao declamaram sua loucura, tolos ao se entregarem a ilusão do amor, tolos ao respirar e tolos ao dormir, e assim os desprezava. Um dia parou até mesmo de olhar a janela. Tamanho se tornou seu luto, que nem mais os raios de luz tinham coragem de entrar, e a escuridão da noite assustou-se com sua negritude.
Porém, a própria dor com o tempo foi se cansando de existir, a dor era tão fútil quanto todo o resto, ele pôde entender. Os gritos sufocantes de seu espírito tornaram-se suspiros, a dor esganiçada tornou-se complacência, e o luto tornou-se inércia. A dor que como dor ainda era vida, ainda era revolta, movimento, resolveu abandoná-lo. A aceitação plena, sincera e absoluta do sofrimento , do absurdo que era a vida sem o Pai, tal como uma estrela em ebulição flamejante se torna um buraco negro, transformara-se em um vazio profundo, mais do que um vazio que em si é uma ausência,mas sim,o Nada, indajeticvável Nada .No Nada o mundo deixou de ser o mundo, a dor deixou de ser dor, a efemeridade de ser efêmera. Encontrou então, a Paz, mas paz não seria a palavra adequada, nem felicidade, tranqüilidade ou calma. Acredito que não exista palavra para descrever o que ele sentiu, talvez somente o mais asceta dos monges possa entender. Ao compreender dentro de si o Nada, ele tornou-se Nada. Os dias vieram e passaram, as noites e as manhãs, e por fim levaram de seus ossos as carnes, de suas veias o sangue, da sua vida o sopro. Porém, quando seu corpo finalmente pereceu, há muito tempo que já não estava mais lá.
O Pai fora morto por um de seus filhos. O filho mais novo, o caçula, criança arteira e curiosa. Sempre importunando o Pai com um sem fim de pergunta, porque assim e não daquele jeito? , por que a vida e por que a morte, por quê? Tinha no seu espírito ímpeto aventureiro, um espírito artístico de grande criatividade. Adorava jogos de imaginação, brincar de faz-de-conta, desenhar, escrever historinhas. Sua atividade preferida era esculpir no barro ou na argila, pequenas estátuas, bonecos, objetos engenhosos e abstratos, o que quer que surgisse em sua imaginação. Gostava principalmente do barro, porque certa vez quando era ainda bem criança, o Pai lhe contara que ele e seus irmãos haviam todos nascidos dessa substância, esculpidos por Sua mão. Esse pequeno conto, ele o achava de excepcional beleza e fermentava sua imaginação. A possibilidade de criar o fascinava, e mais ainda a esperança infantil que uma de suas humildes esculturas algum dia ganhassem vida, e saíssem pelo mundo voando, nadando. O Pai aprovava esses feitos imaginativos, mas algumas vezes procurava impor limites às idéias do filho, mas no final acabava por apreciar os resultados.
Entretanto o caçula às vezes desobedecia ao Pai, olhando onde não devia, saindo de casa escondido, perguntando sobre aquilo que não deveria ser perguntado. Era rebelde, não entendia a rigidez do “Por que sim, por que não”, preferia o lobo a ovelha. Achava engraçada a submissão temerosa de seus irmãos, a vocação que tinham para escravos, e o prazer que pareciam sentir nisso. Mas mesmo rebelde ainda era amado por seus irmãos, e o Pai, por mais severo que fosse, ainda brincava com ele, lhe dava alguns doces de vez em quando, respondia algumas de suas perguntas mais simples.
Não vou dizer que não amava o Pai, esse pequeno assassino, mas seu amor era diferente. Não era o amor de um cão por seu dono, mas o amor daquele que admira, o amor daquele que com silenciosa e respeitosa inveja, deseja torna-se igual. Tinha seu Pai como modelo, como exemplo, mas não suas palavras, ditos, ordens, ensinamentos, mas sim Ele próprio, seu poder, sua sabedoria.
O Pai tinha uma caixa guardada, proibido a qualquer um dela se aproximar, lá Ele guardava seu maior Segredo. Dizia-se que o primeiro de todos os seus filhos, um dia havia tentado se aproximar dessa caixa, e por pouco não conseguiu, tendo o Pai ao descobrir, o banido para sempre como traidor, tirando dele até mesmo o direito de se considerar Seu filho. Esse desgarrado, pelo que se dizia , havia vagado pelo mundo em remorso, até achar refúgio em algum lugar debaixo da terra, onde longe do amor do Pai, havia se tornado um monstro terrível, com chifres e tudo. Essa história contada pelo Pai, junto com todos outros contos de bicho-papão e homem-do-saco, havia espalhado terror e receio entre todos os irmãos, mas o caçula por mais que com elas se assustasse, sempre suspeitara que eram nada mais do que simples histórias. E tinha grande curiosidade de um dia abrir essa caixa, descobrir finalmente o segredo que o Pai tanto escondia, desvelar a distância que O separava de seus filhos.
Então, com excepcional irresponsabilidade, o filho mais novo, um dia foi até os aposentos do Pai, determinado a finalmente descobrir tal segredo. Aproximou-se da caixa, o peito pulsando rápido, suor gélido brotando de sua pele. Suas mãozinhas tremeram ao tocar na tampa da caixa, ela parecia tão velha quando o próprio mundo, a palavra “Verdade” escrita nela. Ele estava apavorado. Mas não poderia parar uma vez indo tão longe, e então a abriu. Durante um mínimo segundo olhou para o lado, ao tempo de ver o Pai na soleira da porta.
O filho mais novo chorava no enterro do Pai. Um choro quieto e envergonhado. Nunca imaginara as conseqüências de seu ato, nunca imaginaria que por uma simples caixa seu Pai morreria assim, como que atingido por um raio, do nada. Mas ele vira o Seu segredo, e ele o carregava consigo. A excitação da sua descoberta, por mais que ele nem para si próprio admitisse, em muito superava seus sentimentos de remorso e perda. Inclinado para o futuro que o esperava, não conseguia sofrer tanto pelo que ficara para trás. O que ele vira na caixa era algo que só ele poderia ver, algo que falara fortemente a seu espírito, como um chamado ou um grande desafio Um pintor veria um pincel e uma tela; um escritor, papel e lápis; a criança viu seu brinquedo favorito, veículo de sua imaginação: o barro.
E com ele o filho mais novo modelou no mundo o próprio mundo, dando a ele seu espírito, sua mente fervilhante em um incêndio de novas idéias. Tudo parecia diferente, tudo possuía em si uma novidade, tudo era matéria para seu espírito criador. Deu a cada coisa um número, um peso, um valor, uma quantidade. Criou inúmeras relações: da água que cai na chuva a que jaz no mar, do movimento da terra a posição das estrelas, do bater de asas de uma borboleta ao poder de um furacão. Catalogou todos os animais, criou olhos capazes de ver as mínimas criaturas, deu a cada coisa uma função, deu um porque ao respirar das árvores, ao bater do coração.
Mais do que isso, criou artefatos, antigo sonho de criança de ver vivo o que seu espírito modelava. Artefatos que o fizeram voar mais rápido do que um pássaro, e ir tão fundo nos mares que nem o Sol ousava acompanhá-lo. Foi até mesmo a Lua, e lá viu a Terra como só as estrelas a viam. Conseguiu curar doenças antes mesmo delas se manifestarem, fazer alguns cegos enxergarem, alguns coxos andarem, alguns surdos ouvirem. Mas também criou novas enfermidades, novas armas, e o mais terrível de seus brinquedos, capaz de com um simples movimento, destruir qualquer cidade, em qualquer lugar.
Ele havia crescido, se tornado homem adulto, forte e saudável, cada vez mais poderoso, cada vez mais parecido com o Pai. Muitos o seguiram, admirados por suas realizações, e os que o temiam também o seguiram por temor. Embora muito do que criasse, fosse inspirado no rosto de seu Pai, na suas idéias, negava tudo o que Ele um dia dissera. E como o falecido não poderia defender-se, tornou-Se esquecido e desacreditado.
Porém, o irmão mais velho nunca esqueceria o Pai, ou pelo menos a imagem que sua mente dele fizera, e com ódio e desconfiança ele observava o seu irmão mais novo, suspeitando de que por culpa dele que o Pai dormia há tanto tempo. Procurou destruir tudo que ele criava, brigaram seriamente, chegando mesmo as vias de fato. Esqueceram por completo que tinham tido as mesmas origens, que eram irmãos. Agora eram inimigos, ora lutando, ora em trégua. Mas com o tempo, o pobre velho não pode mais enfrentar a força juvenil de seu irmão, e desacreditado por tudo e por todos, isolou-se do mundo. Aos olhos deste passou a ser visto apenas como uma curiosidade, uma lembrança interessante de um tempo felizmente já acabado.
Mas eis que o caçula tem seus próprios filhos, e agora ele era Pai. Dizem que os filhos reproduzem em seus rebentos, o mesmo comportamento que seus pais tiveram com eles. O Pai não era diferente, agindo com Seus filhos, como Seu próprio pai agira com Ele, dando-lhes ordens, impondo-lhes comportamentos, idéias, e principalmente mantendo oculto deles o Segredo que há tanto tempo roubara de certa caixa. Também consolava Seus filhos em noites tempestuosas, mas não com conto-de-fadas, mas com o que Ele chamava de Fato, criação Sua muito em voga e bem aceita. Orientava Suas crianças, dava-lhes um caminho, uma bússola e um sentido, tal como Seu pai fizera, apenas mudando as palavras, o conteúdo, o método. Era muito amado, muito respeitado, todos recorriam a Ele, o mundo era Seu.
Houve então, de um de Seus filhos, de todos o que mais se parecia com Ele, ter igualmente tanta curiosidade, e tão pouca vocação para verdades prontas quanto Ele tivera um dia. Era criativo, rebelde, original, curioso. Mas por mais insubordinado que fosse, louco segundo algum de seus irmãos, admirava seu Pai a cima de tudo, e sonhava em um dia ser como Ele, colocar-se como igual perante Sua presença, ser tão amado como Ele o era. Levado pela curiosidade acabou descobrindo que o Pai guardava um grande Segredo, em uma caixa muito velha, herança de algum avô desconhecido. Não sossegaria até achá-la e ver o que tinha dentro. Acabou achando a tal caixa. Abriu-a sem que o Pai vesse, e surpreendeu-se mais do que jamais imaginara com o que encontrou lá dentro.
Quando o Pai morreu nem todos os filhos choravam. O Sol se punha no horizonte, ou será que estava nascendo?
segunda-feira, 13 de setembro de 2010
Sem-titulo
Sem-titulo
Eu prefiro os sonhos inventados
À realidade crua e fria,
Simples e mortal,
Que me sustenta e me devora.
Eu prefiro a mentira do teatro
Ao tecido inerte,
Do normal e sem cor,
Que me destrói e me refaz.
Eu prefiro o olhar miope do amor
À verdade do sexo,
Do prazer e da dor,
Que me constrói e me desfaz.
Eu quero o odor das rosas de papel,
Criada pelas minhas mãos,
Sem a sufocante macrocefalia,
De mil químicas e evoluções
Eu quero a música do silêncio,
Tocada no meu corpo,
O som mais selvagem,
Da natureza mais feroz.
Só quero tecer o mundo,
Como o acaso o tece.
Ser meu único e eterno,
ser Deus e criador.
Eu prefiro os sonhos inventados
À realidade crua e fria,
Simples e mortal,
Que me sustenta e me devora.
Eu prefiro a mentira do teatro
Ao tecido inerte,
Do normal e sem cor,
Que me destrói e me refaz.
Eu prefiro o olhar miope do amor
À verdade do sexo,
Do prazer e da dor,
Que me constrói e me desfaz.
Eu quero o odor das rosas de papel,
Criada pelas minhas mãos,
Sem a sufocante macrocefalia,
De mil químicas e evoluções
Eu quero a música do silêncio,
Tocada no meu corpo,
O som mais selvagem,
Da natureza mais feroz.
Só quero tecer o mundo,
Como o acaso o tece.
Ser meu único e eterno,
ser Deus e criador.
domingo, 15 de agosto de 2010
Amor-e-te
Amor, amo, amo-te, amor-te
Amo-te amor, amo-te amor-te.
Amor, ama-te, amor-te
Ama-te até amor-te,
Amor-te, ama amor,
Amor, amas, amor-te,
Até amor-te do amor?
Amo-te amor, amo-te amor-te.
Amor, ama-te, amor-te
Ama-te até amor-te,
Amor-te, ama amor,
Amor, amas, amor-te,
Até amor-te do amor?
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
Olhos Azuis
Ele me ama. Ou vai me matar.
Eu estava linda quando eu o conheci. Andando sozinha em uma rua escura, de noite. Bêbada, drogada, voltando de uma festa. Um ácido mais forte do que o usual, uma droga deliciosa que um conhecido havia trazido da Europa. Eu estava ótima.Tinha acabado de terminar meu namoro. Pelo mais simples dos motivos: eu não o amava. Por isso estava sozinha, procurando um táxi. Linda.
Ele era um cara legal. Bonito, divertido, me amava. Mas eu não acreditava no amor. Não via nada mais patético do que ficar horas esperando um telefonema, aquele frio na barriga, mandar mil mensagens, um buquê de rosas. O amor é uma tentativa hipócrita de nos ocultarmos de nós mesmos, de negarmos a eterna solidão. Mesmo assim eu o namorara durante um ano. Bem, ele era bom na cama e isso é o que importa.
Meus saltos ecoando na rua. Eu mal vi o homem se aproximando. Estava tonta. Ele era feio, horrível, estava sem camisa, um olhar duro. Ele vai me assaltar. Tento fugir, mas ele me segura, eu grito, mas uma mão me sufoca. Eu vou te estuprar, se tu gritar eu te mato. Eu me debato, eu o arranho. Ele rasga minha blusa Gucci, minha bolsa LV cai no chão. Não tem ninguém ao redor. Sou jogada contra a parede, mãos passam pelo meu corpo, ele puxa meu cabelo, eu choro. Suas mãos calejadas vasculham meu corpo, acham meu sexo. Sinto-me impotente, um grito sufocado, não consigo me mexer. Eu sinto o hálito dele, o cheiro de suor. Me contorço, esperneio, arranho. Mas nada.
De repente, estou livre. Ouço um barulho, o homem está jogado contra a parede. Diante dele, outro homem. Ele o levanta com facilidade, pressiona seu corpo. No escuro não vejo direito, tudo é apenas um borrão. O homem cai sobre o corpo do molestador. Ele se contorce, esperneia, um grito seco. Eu fico parada, no chão, sem entender, um medo terrível se apropriando de cada músculo dolorido, um pavor que sufocava até mesmo a vontade de gritar.
Então, o outro homem levantou. O corpo sem camisa não se mexia. Ele se aproximou de mim devagar. Levantei, tentei falar, perguntar quem ele era. Mas não consegui. Ele me olhou nos olhos. Dois olhos azuis, como o fogo, ardentes. Eu me acalmei, ele se aproxima, cada vez mais perto. Eu tremia. Esticou seu braço, devagar até que sua mão tocou meu rosto. Olhos azuis que queimavam.
Pude ver seu rosto. Branco, e liso, de mármore. Duas pedras brilhando. Um misto de pavor e excitação atravessou meu corpo. O seu toque era frio, suave, uma leve carícia. Seu olhar eternamente no meu. Um sentimento de beleza imensurável tomou conta de mim, nunca vira homem mais belo. Era como se o tempo parasse, o instante se resumiu a aqueles olhos. Minha vida sumiu diante de mim, nada mais existia. Seus lábios estavam vermelhos, sangue escorrendo deles. Sangue do molestador. A beleza dele me penetrava, dominou o meu pânico. Não parava de olhá-lo, não poderia tirar os olhos dele. Obrigada por me salvar, balbuciei. Sem mexer um músculo ele respondeu, eu não te salvei, vim atrás dele. E seus lábios tocaram os meus rapidamente. Senti por um instante o gosto ferroso de sangue.
Ele se foi. Fiquei sozinha, dominada por aquela beleza, meu coração acelerado. Uma paz ardente dentro de mim, um desejo e uma tristeza. Aquele rosto, duas chamas azuis no mármore mais branco.
Estava na casa de uma amiga. Um desfile de vidas medíocres. Conversas vazias. Um tédio intenso, emanando da alma de cada um ali. Monotonia tão intensa, geralmente capaz de nos levar as mais incríveis loucuras, as mais estupendas demonstrações de vida, no sexo, no jeito que dançamos, que rimos e saímos a noite. Maquiando com beleza e luxo o terrível fato de estarmos mortos. Ocos por dentro. Abismos de mentes sem propósito. Viciados em prazer por não ter melhor vício. Drogas e bebida para entorpecer nossos sentidos. Estávamos todos muito loucos. Pelo menos, eu estava. Mais daquele ácido. Muito mais. E alguns outros também. Pura rotina. Alguém vomita no banheiro, uma amiga trepa do meu lado. Essa era a minha vida.
No entanto, naquela noite havia algo de diferente. Sempre sentira que aquele era meu lugar. No luxo, no hedonismo fútil que eu me destinara. Dias e dias, de prazer em prazer. Sem nada que pudesse me preencher. Não tinha fé em nada além disso. Aquilo era a felicidade, e felicidade só poderia ser aquilo. Mas quando eu fechava os olhos, eu sentia o calor daqueles olhos. Não parava de pensar naquele homem, meu salvador. O gosto de sangue ainda estava levemente nos meus lábios. Lembrava-me de cada detalhe do seu rosto. Seu toque parecia ter deixado uma marca no meu rosto, de onde escorria um pulsar ardente e vivo. Vida. Era isso que eu via brilhar nos seus olhos. Vida quente, correndo nas veias.
De repente, senti-me estranha naquele ambiente. As risadinhas, os gritinhos, os vestidinhos, pareceram-me distantes, aquele não era meu mundo. Meu mundo perdeu o sentido naquela rua escura. Sentira um prazer que realmente valia a pena ser sentido. E agora, todo o sentir da minha vida parecia embotado, um véu apenas, que ocultava algo além. Não me sentia mais oca. Aqueles olhos azuis de alguma forma haviam me preenchido. Aquele encontro tinha a textura dos sonhos, eu o queria para mim. Sonhava em encontrá-lo de novo, em beijá-lo. Estava irritava com tudo que me cercava, queria gritar e ir embora dali. Mas eu não podia, estava entre os meus, eu tinha uma imagem a manter. Minha amiga percebeu algo estranho, disse que eu deveria estar tendo uma bad. Mandei-a se foder e fui pegar um drink.
Foi quando um rapaz veio falar comigo, me chamou para o quarto. Seu rosto e corpo eram dignos de uma capa de revista. Mas seus olhos azuis estavam apagados pelas drogas. Senti nojo, repulsa na boca do estômago. Raiva de todos ali. Queria gritar. Joguei meu drink na cara dele, minha amiga ficou puta, mas eu não ligo. Quero que todos eles se fodam.
Cheguei em casa agoniada, fui pro jardim, sentei em um banco de pedra. A lua estava cheia. Sentia-me sufocada, minha vida toda parecia um erro, estava desorientada, tonta. Uma angústia me cortava, eu queria vê-lo, eu queria tocá-lo. Ele me fez ver o que eu era, me mostrou algo novo. Um mundo melhor. Não tão vazio, não tão seco, não tão estéril. Um mundo preenchido por aquela beleza, por algo que agora eu entendia ser o amor. Então, eu fechei os meus e desejei com todas as minhas forças que ele estivesse aqui, que eu pudesse vê-lo mais uma vez.
E quando eu os abri, eu vi a lua sob as árvores, sob as flores. E uma sombra entre elas. Uma sombra que se mexia, se aproximando. Então, ele olhou pra mim, e eu senti o peso do seu olhar esmagar meu coração, meu corpo todo ardendo de um desejo que de tão intenso que era dor. Até que vi seus olhos no escuro e eles tocaram nos meus. Sua mão e seus lábios vieram até mim, de leve.
Eu o abracei. Uma euforia tomou conta de mim, eu o esmaguei entre meus braços, beijei cada milímetro do seu rosto. Passei a mão por seus cabelos escuros e lisos, acariciei a textura dura de seu rosto. Da minha boca escorriam as mais belas promessas de amor, eu te amo, serei sua para sempre, você me mostrou a vida, eu te quero, te amo mais que tudo, nunca me deixe.
Ele impassível, me olhava, na sua boca um sorriso, me encontre no cemitério, na maior das tumbas, amanhã a meia-noite, e você será minha para sempre. Então, ele me beijou, intensamente. Sua língua na minha, o sabor de sangue, apaixonadamente, ele me beijou, me beijou até o mundo desparecer ao meu redor. Dominada por uma beleza tão intensa, uma alegria que transbordava e coloria tudo ao meu redor, um sonho mais doce do que qualquer outro, queria que o mundo acabasse ali para aquele momento ser eterno, e então ele se foi.
Meia-noite. Ansiei por esse momento a cada pensamento, a cada respiração. E eu tinha medo. Ele me ama, ou vai me matar. Beber meu sangue, roubar a minha vida. Mas não era isso que era o amor? Um risco, onde se oferece o próprio sangue esperando que o outro vá oferecer também, e se ele não oferece, você morre. Um jogo de azar onde o prêmio é a vida e a derrota é a morte. E se eu morresse, morreria feliz, pois teria arriscado viver. Viver mais que todos, viver o mistério, o incrível e o belo. O amor. Mas eu estava com medo. Meu terror diluído em desejo, no desejo de tê-lo para sempre comigo, a volúpia da mais sincera e insana paixão. Ele me ama, e serei eternamente feliz. Eu espero.
Entrei no cemitério, o portão estava destrancado. Deixava para trás tudo o que eu era. Eu renasceria. Seria nova, viveria pela primeira vez. Seria amada , amarei de verdade, e o amor será a única verdade. Ou eu vou morrer e poupar o mundo de mais uma patricinha estúpida.
As sombras dos túmulos se projetando sobre o caminho, o cantar de um corvo na distância. A lua está cheia e o céu sem estrelas. Usava meu melhor vestido, branco, liso, de seda, diamantes nos meus brincos e no meu pescoço. Avistei o maior dos túmulos. Todo de mármore, coberto pela prata da lua. Caminhei lentamente para ele. O vento balança meus cabelos, levantava a barra do meu vestido. Meu coração batia acelerado, meus passos eram lentos, era com se estivesse em transe. As sombras abriam espaço para eu passar. Eu era a noiva e a noite o meu cortejo. A Lua, minha sacerdotisa e testemunha. O corvo cantando minha marcha nupcial, o vento é minha dama de honra. Os mortos, os mais adoráveis convidados. O branco, símbolo de minha última virgindade, a virgindade da minha alma. Eu estava pronta.
A porta estava aberta. Ele me olhava, o brilho azul na escuridão. Fitando seus olhos, eu me aproximei, subindo o pequeno lance de escadas até a porta. E lá, diante do olhar do meu amor, sob o luar incandescente, eu tirei minha roupa. Nua, vestida apenas pela prata vinda do céu, e pelas jóias vindas da terra. Assim eu me entregaria a ele para a eternidade. Nua, sem máscaras. Esperei o seu chamado. Ouvi um sussurro correndo pelo meu corpo. Ele me quer. Serei só sua, hoje e para sempre. Eu entrei.
Ele estava sentado no fundo. Levantou-se, andou até mim, e eu até ele. Você veio, ele disse, eu vim, e serei sua mais que para sempre. Ele sorriu, e seus olhos brilhavam ainda mais. Ele me beijou, sua mãos seguraram meu corpo, sua língua brincou com a minha. O mais delicioso dos sabores, o sabor de sangue, senti-o na minha boca, saliva vermelha. Seus braços me envolvendo, contra a parede, sua boca e seus dedos vasculhando meu corpo, beijando-o , lambendo, acariciando. E meu corpo clamava por ele, eu arranhava suas costas, beijava seu pescoço, me entregava a frieza de sua pele. Sedenta, em um frêmito de desespero, eu o agarrava, temia perder aquele toque. Selvagem. Apaixonado.
Sua língua desceu, meus seios, minha barriga, meu sexo. Um prazer mais intenso do que qualquer palavra, a plenitude de um gozo mais do que carnal, a violência de um amor que não mais cabia em mim, queria rasgar, queria morder, agarrei-o com mais força, minha boca gemendo palavras doces, poesia, prosa. Um coro de anjos. O cheiro suave de mil rosas vermelhas, o frio que era cor de neve, e o mundo, ah, o mundo e o tempo, não mais existiam, eu e ele éramos o tudo, e nada mais tinha o direito de existir.
Minhas memórias escorriam com o meu suor, se afastavam de mim. Nunca vivera antes daquele momento, nada do que eu era tinha importância, nunca mais viveria algo além daquilo. Tremia de prazer, eu ardia, minha pele queimava. Como um animal, como um homem, como um deus, ele me desflorava, cada toque, do mais leve ao mais bruto, era da cor do céu, a quintessência do paraíso. Meu corpo todo ofertado a ele, para o seu desfrute e paixão. De olhos fechados eu via a face mais pura da beleza, meus sentidos explodindo ao meu redor como cometas no céu negro.
- Eu abri os olhos e vi os teus, meu amor, nunca antes tão intensos, nunca antes tão belos.
Ele me penetrou e eu me senti renascer em puro êxtase, em um jorro de glória, cada fibra da minha existência vibrando naquela intensidade. Toda a beleza do mundo corria em mim Eu estava no seio do coração selvagem da vida, embebedada pelo seu pulsar, pelo seu sangue mais que vermelho. Era a apoteose do sublime, a quintessência do paraíso, a vida eterna.
Então, veio a dor. Como um raio predizendo uma tempestade, ferindo cada músculo. Misturada ao prazer, ao mais intenso dos prazeres, eu não me importava com ela, que viesse toda a dor do mundo. E ela aumentou, se avolumou e ganhou forma, minha pele gritava ao toque dele, mas eu não poderia pedir para que parasse, eu estava no seio do mais selvagem coração da vida, nada me tiraria de lá, nada. Eu gritava, e ele não ouvia, continuava dentro de mim. Eu o sentia lá, sentia todo o seu ser em comunhão com o meu, me purificando da minha vida torpe, da minha promiscuidade, da minha falta de fé, levando embora meu sofrimento, me oferecendo a glória da eternidade.
Doía e como doía. Cada vez mais, como agulhas, calor visceral vindo de dentro, meus músculos se contraindo, ardendo, minha vagina parecia coroada por brasas, minha pele iria rasgar, não, não pare. O estômago se contorcendo, meu coração batendo mais forte do que meu peito poderia suportar. Suava, tremia, chorava de alegria. Eu te amo, je t’aime, love you, je veux ton amour .Estava sangrando. Senti o sangue quente em minhas mãos. Eu estava sangrando, decorando aquela tumba com a minha cor. Sentindo-me tonta, estava fraca, enjoada. Mas eu não podia parar, ignoraria a dor, ela que se fudesse, eu estou com ele, não há dor no mundo que me impeça, eu sou amor, e é o amor que me fere, não ele, serei dele para sempre, nunca mais minha alma sentirá dor. Mas eu sangrava.
- Morrerei em êxtase, por ti, meu amor.
Então, veio o nada e um clarão branco.
Tensão no ar. Cheiro de hospital. Minha consciência está fraca. Não sei onde estou, o que aconteceu, onde está o meu amor. O êxtase havia passado, meu corpo gemendo, tudo havia passado. Voltara a ser eu. Não conseguia abrir os olhos, estava deitada, parada, mas eu me movia, como em uma maca. Ouvi vozes bem distantes, vozes nervosas, apressadas. Ficaram mais próximas, consigo ouvir algumas palavras...encontrada pelo coveiro...delirando...é sobre mim que estão falando?...hemorragia...batimentos cardíacos instáveis..alucinações...exame de sangue mostrou...ácido...tudo indica um quadro de...overdose
Eu estava linda quando eu o conheci. Andando sozinha em uma rua escura, de noite. Bêbada, drogada, voltando de uma festa. Um ácido mais forte do que o usual, uma droga deliciosa que um conhecido havia trazido da Europa. Eu estava ótima.Tinha acabado de terminar meu namoro. Pelo mais simples dos motivos: eu não o amava. Por isso estava sozinha, procurando um táxi. Linda.
Ele era um cara legal. Bonito, divertido, me amava. Mas eu não acreditava no amor. Não via nada mais patético do que ficar horas esperando um telefonema, aquele frio na barriga, mandar mil mensagens, um buquê de rosas. O amor é uma tentativa hipócrita de nos ocultarmos de nós mesmos, de negarmos a eterna solidão. Mesmo assim eu o namorara durante um ano. Bem, ele era bom na cama e isso é o que importa.
Meus saltos ecoando na rua. Eu mal vi o homem se aproximando. Estava tonta. Ele era feio, horrível, estava sem camisa, um olhar duro. Ele vai me assaltar. Tento fugir, mas ele me segura, eu grito, mas uma mão me sufoca. Eu vou te estuprar, se tu gritar eu te mato. Eu me debato, eu o arranho. Ele rasga minha blusa Gucci, minha bolsa LV cai no chão. Não tem ninguém ao redor. Sou jogada contra a parede, mãos passam pelo meu corpo, ele puxa meu cabelo, eu choro. Suas mãos calejadas vasculham meu corpo, acham meu sexo. Sinto-me impotente, um grito sufocado, não consigo me mexer. Eu sinto o hálito dele, o cheiro de suor. Me contorço, esperneio, arranho. Mas nada.
De repente, estou livre. Ouço um barulho, o homem está jogado contra a parede. Diante dele, outro homem. Ele o levanta com facilidade, pressiona seu corpo. No escuro não vejo direito, tudo é apenas um borrão. O homem cai sobre o corpo do molestador. Ele se contorce, esperneia, um grito seco. Eu fico parada, no chão, sem entender, um medo terrível se apropriando de cada músculo dolorido, um pavor que sufocava até mesmo a vontade de gritar.
Então, o outro homem levantou. O corpo sem camisa não se mexia. Ele se aproximou de mim devagar. Levantei, tentei falar, perguntar quem ele era. Mas não consegui. Ele me olhou nos olhos. Dois olhos azuis, como o fogo, ardentes. Eu me acalmei, ele se aproxima, cada vez mais perto. Eu tremia. Esticou seu braço, devagar até que sua mão tocou meu rosto. Olhos azuis que queimavam.
Pude ver seu rosto. Branco, e liso, de mármore. Duas pedras brilhando. Um misto de pavor e excitação atravessou meu corpo. O seu toque era frio, suave, uma leve carícia. Seu olhar eternamente no meu. Um sentimento de beleza imensurável tomou conta de mim, nunca vira homem mais belo. Era como se o tempo parasse, o instante se resumiu a aqueles olhos. Minha vida sumiu diante de mim, nada mais existia. Seus lábios estavam vermelhos, sangue escorrendo deles. Sangue do molestador. A beleza dele me penetrava, dominou o meu pânico. Não parava de olhá-lo, não poderia tirar os olhos dele. Obrigada por me salvar, balbuciei. Sem mexer um músculo ele respondeu, eu não te salvei, vim atrás dele. E seus lábios tocaram os meus rapidamente. Senti por um instante o gosto ferroso de sangue.
Ele se foi. Fiquei sozinha, dominada por aquela beleza, meu coração acelerado. Uma paz ardente dentro de mim, um desejo e uma tristeza. Aquele rosto, duas chamas azuis no mármore mais branco.
Estava na casa de uma amiga. Um desfile de vidas medíocres. Conversas vazias. Um tédio intenso, emanando da alma de cada um ali. Monotonia tão intensa, geralmente capaz de nos levar as mais incríveis loucuras, as mais estupendas demonstrações de vida, no sexo, no jeito que dançamos, que rimos e saímos a noite. Maquiando com beleza e luxo o terrível fato de estarmos mortos. Ocos por dentro. Abismos de mentes sem propósito. Viciados em prazer por não ter melhor vício. Drogas e bebida para entorpecer nossos sentidos. Estávamos todos muito loucos. Pelo menos, eu estava. Mais daquele ácido. Muito mais. E alguns outros também. Pura rotina. Alguém vomita no banheiro, uma amiga trepa do meu lado. Essa era a minha vida.
No entanto, naquela noite havia algo de diferente. Sempre sentira que aquele era meu lugar. No luxo, no hedonismo fútil que eu me destinara. Dias e dias, de prazer em prazer. Sem nada que pudesse me preencher. Não tinha fé em nada além disso. Aquilo era a felicidade, e felicidade só poderia ser aquilo. Mas quando eu fechava os olhos, eu sentia o calor daqueles olhos. Não parava de pensar naquele homem, meu salvador. O gosto de sangue ainda estava levemente nos meus lábios. Lembrava-me de cada detalhe do seu rosto. Seu toque parecia ter deixado uma marca no meu rosto, de onde escorria um pulsar ardente e vivo. Vida. Era isso que eu via brilhar nos seus olhos. Vida quente, correndo nas veias.
De repente, senti-me estranha naquele ambiente. As risadinhas, os gritinhos, os vestidinhos, pareceram-me distantes, aquele não era meu mundo. Meu mundo perdeu o sentido naquela rua escura. Sentira um prazer que realmente valia a pena ser sentido. E agora, todo o sentir da minha vida parecia embotado, um véu apenas, que ocultava algo além. Não me sentia mais oca. Aqueles olhos azuis de alguma forma haviam me preenchido. Aquele encontro tinha a textura dos sonhos, eu o queria para mim. Sonhava em encontrá-lo de novo, em beijá-lo. Estava irritava com tudo que me cercava, queria gritar e ir embora dali. Mas eu não podia, estava entre os meus, eu tinha uma imagem a manter. Minha amiga percebeu algo estranho, disse que eu deveria estar tendo uma bad. Mandei-a se foder e fui pegar um drink.
Foi quando um rapaz veio falar comigo, me chamou para o quarto. Seu rosto e corpo eram dignos de uma capa de revista. Mas seus olhos azuis estavam apagados pelas drogas. Senti nojo, repulsa na boca do estômago. Raiva de todos ali. Queria gritar. Joguei meu drink na cara dele, minha amiga ficou puta, mas eu não ligo. Quero que todos eles se fodam.
Cheguei em casa agoniada, fui pro jardim, sentei em um banco de pedra. A lua estava cheia. Sentia-me sufocada, minha vida toda parecia um erro, estava desorientada, tonta. Uma angústia me cortava, eu queria vê-lo, eu queria tocá-lo. Ele me fez ver o que eu era, me mostrou algo novo. Um mundo melhor. Não tão vazio, não tão seco, não tão estéril. Um mundo preenchido por aquela beleza, por algo que agora eu entendia ser o amor. Então, eu fechei os meus e desejei com todas as minhas forças que ele estivesse aqui, que eu pudesse vê-lo mais uma vez.
E quando eu os abri, eu vi a lua sob as árvores, sob as flores. E uma sombra entre elas. Uma sombra que se mexia, se aproximando. Então, ele olhou pra mim, e eu senti o peso do seu olhar esmagar meu coração, meu corpo todo ardendo de um desejo que de tão intenso que era dor. Até que vi seus olhos no escuro e eles tocaram nos meus. Sua mão e seus lábios vieram até mim, de leve.
Eu o abracei. Uma euforia tomou conta de mim, eu o esmaguei entre meus braços, beijei cada milímetro do seu rosto. Passei a mão por seus cabelos escuros e lisos, acariciei a textura dura de seu rosto. Da minha boca escorriam as mais belas promessas de amor, eu te amo, serei sua para sempre, você me mostrou a vida, eu te quero, te amo mais que tudo, nunca me deixe.
Ele impassível, me olhava, na sua boca um sorriso, me encontre no cemitério, na maior das tumbas, amanhã a meia-noite, e você será minha para sempre. Então, ele me beijou, intensamente. Sua língua na minha, o sabor de sangue, apaixonadamente, ele me beijou, me beijou até o mundo desparecer ao meu redor. Dominada por uma beleza tão intensa, uma alegria que transbordava e coloria tudo ao meu redor, um sonho mais doce do que qualquer outro, queria que o mundo acabasse ali para aquele momento ser eterno, e então ele se foi.
Meia-noite. Ansiei por esse momento a cada pensamento, a cada respiração. E eu tinha medo. Ele me ama, ou vai me matar. Beber meu sangue, roubar a minha vida. Mas não era isso que era o amor? Um risco, onde se oferece o próprio sangue esperando que o outro vá oferecer também, e se ele não oferece, você morre. Um jogo de azar onde o prêmio é a vida e a derrota é a morte. E se eu morresse, morreria feliz, pois teria arriscado viver. Viver mais que todos, viver o mistério, o incrível e o belo. O amor. Mas eu estava com medo. Meu terror diluído em desejo, no desejo de tê-lo para sempre comigo, a volúpia da mais sincera e insana paixão. Ele me ama, e serei eternamente feliz. Eu espero.
Entrei no cemitério, o portão estava destrancado. Deixava para trás tudo o que eu era. Eu renasceria. Seria nova, viveria pela primeira vez. Seria amada , amarei de verdade, e o amor será a única verdade. Ou eu vou morrer e poupar o mundo de mais uma patricinha estúpida.
As sombras dos túmulos se projetando sobre o caminho, o cantar de um corvo na distância. A lua está cheia e o céu sem estrelas. Usava meu melhor vestido, branco, liso, de seda, diamantes nos meus brincos e no meu pescoço. Avistei o maior dos túmulos. Todo de mármore, coberto pela prata da lua. Caminhei lentamente para ele. O vento balança meus cabelos, levantava a barra do meu vestido. Meu coração batia acelerado, meus passos eram lentos, era com se estivesse em transe. As sombras abriam espaço para eu passar. Eu era a noiva e a noite o meu cortejo. A Lua, minha sacerdotisa e testemunha. O corvo cantando minha marcha nupcial, o vento é minha dama de honra. Os mortos, os mais adoráveis convidados. O branco, símbolo de minha última virgindade, a virgindade da minha alma. Eu estava pronta.
A porta estava aberta. Ele me olhava, o brilho azul na escuridão. Fitando seus olhos, eu me aproximei, subindo o pequeno lance de escadas até a porta. E lá, diante do olhar do meu amor, sob o luar incandescente, eu tirei minha roupa. Nua, vestida apenas pela prata vinda do céu, e pelas jóias vindas da terra. Assim eu me entregaria a ele para a eternidade. Nua, sem máscaras. Esperei o seu chamado. Ouvi um sussurro correndo pelo meu corpo. Ele me quer. Serei só sua, hoje e para sempre. Eu entrei.
Ele estava sentado no fundo. Levantou-se, andou até mim, e eu até ele. Você veio, ele disse, eu vim, e serei sua mais que para sempre. Ele sorriu, e seus olhos brilhavam ainda mais. Ele me beijou, sua mãos seguraram meu corpo, sua língua brincou com a minha. O mais delicioso dos sabores, o sabor de sangue, senti-o na minha boca, saliva vermelha. Seus braços me envolvendo, contra a parede, sua boca e seus dedos vasculhando meu corpo, beijando-o , lambendo, acariciando. E meu corpo clamava por ele, eu arranhava suas costas, beijava seu pescoço, me entregava a frieza de sua pele. Sedenta, em um frêmito de desespero, eu o agarrava, temia perder aquele toque. Selvagem. Apaixonado.
Sua língua desceu, meus seios, minha barriga, meu sexo. Um prazer mais intenso do que qualquer palavra, a plenitude de um gozo mais do que carnal, a violência de um amor que não mais cabia em mim, queria rasgar, queria morder, agarrei-o com mais força, minha boca gemendo palavras doces, poesia, prosa. Um coro de anjos. O cheiro suave de mil rosas vermelhas, o frio que era cor de neve, e o mundo, ah, o mundo e o tempo, não mais existiam, eu e ele éramos o tudo, e nada mais tinha o direito de existir.
Minhas memórias escorriam com o meu suor, se afastavam de mim. Nunca vivera antes daquele momento, nada do que eu era tinha importância, nunca mais viveria algo além daquilo. Tremia de prazer, eu ardia, minha pele queimava. Como um animal, como um homem, como um deus, ele me desflorava, cada toque, do mais leve ao mais bruto, era da cor do céu, a quintessência do paraíso. Meu corpo todo ofertado a ele, para o seu desfrute e paixão. De olhos fechados eu via a face mais pura da beleza, meus sentidos explodindo ao meu redor como cometas no céu negro.
- Eu abri os olhos e vi os teus, meu amor, nunca antes tão intensos, nunca antes tão belos.
Ele me penetrou e eu me senti renascer em puro êxtase, em um jorro de glória, cada fibra da minha existência vibrando naquela intensidade. Toda a beleza do mundo corria em mim Eu estava no seio do coração selvagem da vida, embebedada pelo seu pulsar, pelo seu sangue mais que vermelho. Era a apoteose do sublime, a quintessência do paraíso, a vida eterna.
Então, veio a dor. Como um raio predizendo uma tempestade, ferindo cada músculo. Misturada ao prazer, ao mais intenso dos prazeres, eu não me importava com ela, que viesse toda a dor do mundo. E ela aumentou, se avolumou e ganhou forma, minha pele gritava ao toque dele, mas eu não poderia pedir para que parasse, eu estava no seio do mais selvagem coração da vida, nada me tiraria de lá, nada. Eu gritava, e ele não ouvia, continuava dentro de mim. Eu o sentia lá, sentia todo o seu ser em comunhão com o meu, me purificando da minha vida torpe, da minha promiscuidade, da minha falta de fé, levando embora meu sofrimento, me oferecendo a glória da eternidade.
Doía e como doía. Cada vez mais, como agulhas, calor visceral vindo de dentro, meus músculos se contraindo, ardendo, minha vagina parecia coroada por brasas, minha pele iria rasgar, não, não pare. O estômago se contorcendo, meu coração batendo mais forte do que meu peito poderia suportar. Suava, tremia, chorava de alegria. Eu te amo, je t’aime, love you, je veux ton amour .Estava sangrando. Senti o sangue quente em minhas mãos. Eu estava sangrando, decorando aquela tumba com a minha cor. Sentindo-me tonta, estava fraca, enjoada. Mas eu não podia parar, ignoraria a dor, ela que se fudesse, eu estou com ele, não há dor no mundo que me impeça, eu sou amor, e é o amor que me fere, não ele, serei dele para sempre, nunca mais minha alma sentirá dor. Mas eu sangrava.
- Morrerei em êxtase, por ti, meu amor.
Então, veio o nada e um clarão branco.
Tensão no ar. Cheiro de hospital. Minha consciência está fraca. Não sei onde estou, o que aconteceu, onde está o meu amor. O êxtase havia passado, meu corpo gemendo, tudo havia passado. Voltara a ser eu. Não conseguia abrir os olhos, estava deitada, parada, mas eu me movia, como em uma maca. Ouvi vozes bem distantes, vozes nervosas, apressadas. Ficaram mais próximas, consigo ouvir algumas palavras...encontrada pelo coveiro...delirando...é sobre mim que estão falando?...hemorragia...batimentos cardíacos instáveis..alucinações...exame de sangue mostrou...ácido...tudo indica um quadro de...overdose
domingo, 18 de julho de 2010
Tirei Férias
Tirei férias da minha alma
Deixei-a trancada,
Em algum canto nebuloso,
Onde ela pode espernear,
E se contorcer a vontade.
E como é assim, uma vida sem alma?
Feliz.
Deixei-a trancada,
Em algum canto nebuloso,
Onde ela pode espernear,
E se contorcer a vontade.
E como é assim, uma vida sem alma?
Feliz.
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
O Acordar
Ele se deitou no lado esquerdo da cama, da mesma forma como se deitara nos últimos vinte anos, quando se mudara para aquele apartamento, jovem e feliz, casado com uma mulher linda e alegre, pela qual ele era totalmente apaixonado. Agora, essa mesma mulher dormia ao seu lado, seus roncos ecoando pelo quarto, sua banha o espremendo na cama. Já há alguns anos se acostumara ao fato de não amá-la mais.
Homem sério, respeitável, de muitos bens e bons ternos. Vivia entre aspas, na polidez letárgica do dia a dia, com a alma cansada para justificar a inércia. Esquecera-se do que era amor. Seu casamento sobrevivia na preguiça, no medo tímido do divorcio, dos seus advogados e da divisão de bens. Por outro lado, não tinha motivos para se separar. Falta de amor não é motivo para separação. Para que se estressar?
No trabalho era um primor, eficiente e bem sucedido. Um burocrata com vocação para burguês. Trabalhava em uma empresa de renome. Seu emprego não o agradava. Igualmente não o desagradava. A diferença principal nessa equação era o contra cheque no final do mês. Seu sonhos? Achava que nunca os tivera. Não almejava sumir mais na vida, estava bom o que tinha. Quem muito quer nada tem.
Esse homem se deitou e dormiu. Uma noite com sonhos banais, não os lembraria como nunca se lembrava. Sonhou com um velho amigo, campos floridos, um carro novo, a cena de um filme água-com-açúcar que vira semana passada. As sete em ponto, seu despertador toca e ele acorda.
Levantou-se, esmerando em não acordar a mulher, que reclamaria, e tomaria café com ele. Seus pés tocaram o chão. Sentiu algo diferente. Relaxado, renovado, como quem sai de uma banheira de hidromassagem. Estranhou, pelo visto dormira bem. Foi ate o banheiro.
Levou um susto. Algo havia mudado ali, algo errado pairava no ar. Olhou ao redor. Tudo no lugar, o vaso, a pia, o jarro de flores de plástico, os produtos de beleza, sabonetes, perfumes, toalhas coloridas. Observou o banheiro, se ajoelhou para olhar de baixo, vasculhou cada canto. Algo mudou aqui, não é o meu banheiro, meu nome está nas inicias da toalha, e esse piso ,eu que escolhi, mas não, esse não é o meu banheiro. Revirou as gavetas, tudo no lugar. Verificou os perfumes, eram os seus ou os dela.
Então , o viu. Parado diante dele, um homem de meia-idade, do outro lado do espelho. Reparou que seu reflexo parecia mais real que ele próprio. Sentia-se etéreo. Não, o mundo é que estava etéreo, tudo possuía uma estranheza, meu deus, o que aconteceu comigo. Molha o resto com água fria. Uma vez, duas. Se olha de novo espelho , e se sente absurdo. Absurdo ter alguém como ele o olhando, o copiando, do outro lado de um pedaço de vidro.A lguém mais real do que ele.
Depois do banho , um novo susto. Sentira a água morna deliciosa sobre seu corpo, sente- a brincando sobre sua pele, acariciando-a. Forma-se uma nuvem no banheiro e ele sente como se o mundo fosse se dissolver nela. Então, lá estava ela.
Era a mulher com que tinha casado. Seu corpo flácido, seus pés –de - galinha e olhar apático. Os cabelos de um louro desbotado, mal cuidados e embolados. Ela estava linda , nunca a vira tão bela. Assustou-se com seu coração batendo mais rápido, assustou-se com a onda de ternura que atravessou sua espinha e ele a beijou. De leve, no rosto, com carinho. Ela recuou,”que que te deu? Você não é de fazer essas coisas”, “eu sou seu marido”. Foi tudo que conseguiu falar e saiu do banheiro.
Sentia-se cada vez mais irreal, seu suco de laranja tinha gosto do vento nos laranjais, e o seu pão tinha gosto de mãos de camponesa, daquelas que batiam os pães em outros tempos. E sua mulher, linda, reluzente. Ela o olhava de um jeito estranho, e sorria as vezes. Na verdade, sorria de escárnio, e já começara a se irritar com o surto de afeto do marido.
Saiu para uma reunião de negócios. No carro, ligou para Helena, sua secretaria. Conversaram, combinaram onde se encontrar. Dirigiu até o motel de sempre, lugar discreto e não muito caro.
Quantos carros, quantos carros, as luzes do sinal, não prestava atenção, quase atropelou um pombo, o sol estava lindo e humilde sobre a copa de uma arvore. Concluiu que estava feliz, não estava cansado. Quantos carros , meu deus, cada carro de uma cor, cada cor em um carro, e ônibus, gordos e flácidos, violentos nos seus barulhos e lá dentro, rostos que o fascinaram por não serem o seu.
Seu carro avançava pelas ruas e as ruas pareciam que recuavam na realidade, o tempo se alargando rapidamente. Viu formas nas fumaças dos carros e de repente parou no vermelho de um sinal. Um menino jogava bolas de tênis ali, ele já o vira antes, já ate mesmo lhe dera uma ou duas moedas.Era magro , estava sem camisa, parecia triste.
E em um súbito esgar, seu coração se expandiu e ele sentiu a sua distancia para aquele menino, um raio de consciência. Sentiu não como uma dor, não com um peso, mas como uma realidade densa e fria. A realidade de sua infância confortável, cercado de brinquedos e amor, das suas viagem para Disney e para a casa de praia. A realidade que era ele estar sentado naquele carro, vestindo um terno , no ar-condicionado, indo encontrar sua amante, enquanto lá fora um menino se esforçava para ganhar um milionésimo do seu salário. A realidade que era ele ser ele e não o menino, o peso da infindável teia de eventos, fatos e acasos , que o colocara ali, dentro do carro, e o menino ali fora. A injustiça essencial dessa desigualdade, como se o universo mesmo estivesse errado, e viu-se culpando o universo, Deus, não acreditava em deus, mas queria acreditar apenas para poder culpá-lo por aquele absurdo. Absurdo, aquilo era absurdo , o menino era absurdo, uma peça fora do lugar no jogo da existência. Seu short barato era absurdo, a mãe gorda e grávida a espreita numa arvore era absurdo, o olha cansado do menino era absurdo, absurdo, aquilo não era real, não era.
O carro de trás buzinou. O sinal está aberto.Acelerou. Sente raiva do menino, ele o tirara mais ainda se seu mundo,sentia-se mais ainda, surreal. Era culpado, para que uns tenham outros tem que não ter, era culpado por aquele menino não ter infância, e não sentia remorso.Sentia raiva pela existência dele lhe impor essa culpa..
Chegou no motel. A secretária o aguardava na suíte, o corpo perfeito enfeitando uma lingerie de renda magnífica, o arfar leve de seu peito enorme. Estava deitada em um sofá, fumando lânguida um cigarro, os cabelos escorrendo por sobre os braços do móvel.
Ficou parado na porta , olhando aquilo. Ele era casado, e tinha uma amante. Uma amante mais jovem e mais bela de sua mulher, que fodia infinitamente melhor, que dizia que o amava ao ponto de ele quase acreditar, uma amante que estava com ele somente pelo dinheiro, e ele que estava com ela somente por sexo, uma tentativa frustrada de sair da monotonia enclausurante que era sua vida, falha, pois ele não a amava, e o sexo por sexo ficou chato, e às vezes nem ele nem ela gozavam, mas fingiam, e como fingiam, ela se contorcendo toda, em uma série de gemidos que pareciam previamente ensaiados, meu deus, eu sou um homem casado, tenho uma mulher, e há quarenta minutos descobri que ainda a amo.
Transaram ali no mesmo no sofá , ele com um vigor súbito, sentindo estremecer a pele ao toque experiente dela, sentindo-se cada vez mais distante a medida que o prazer se aproximava. As paredes do quarto pareciam se afastar, os instantes se atropelavam, as caretas de prazer dela tinham algo de inumano, de animal, de presa e caçador, e quando gozou, seu gozou ardeu na sua alma, algo se quebrou, ele se sentou esbaforido, suando frio.
Nunca sentira remorso por trair sua mulher. Achava algo banal. Agora, também não sentia remorso, mas uma simples estranheza, que saltitava no seu peito, uma grande ironia de escárnio pairando no seu ar. .Porque ele havia visto o amor hoje pela manhã, visto seu rosto tímido espiar pela fresta da porta do mundo, vira o amor em sua mulher, sentiria o amor espreitando dentro de si, vira o amor no seu olhar para o mundo, e então ele compreendeu, porque tudo parecia tão estranho.
Pois agora seu coração era jovem, e podia amar, e a letargia da vida esvanecia, e com ela seu mundo.
Levantou-se e saiu rápido, deixando a mulher com cara de interrogação no quarto, não deu nem um adeus, simplesmente foi e pegou o carro, rápido para o trabalho, queria estar cedo em casa, queria ver sua mulher, queria tocá-la, acreditava, tinha esperança, de que voltaria a amá-la,talvez já a amasse e não soubesse, e o amor lhe sorria nas mínimas coisas, e era pleno novo, como um amanhecer depois de um longo sono.
E conforme assim se sentia, o mundo recuava, as coisas se tornavam mais leves, como que se sorrissem , uma nevoa de paz obscurecia sua vista, e tudo tinha ar de chuva fresca no verão. Via uma beleza jovem em tudo, nas árvores e seus verdes, nas cores dos carros, nas pessoas na rua, e no azul intenso do céu, cada cor faiscando, sorrindo condescendente para seu coração, para seu coração que podia amar. A realidade cada vez mais atrás, cada vez mais distante e menos querida, se assim era se sentir irreal, nunca mais almejaria a realidade.
Estava no escritório. Uma pilha de papéis. Estava levemente assustado, um quê de temor nos móveis ao seu redor. Muitos sólidos, madeiras caras, tudo muito quadrado e impessoal. Propositalmente feito para oprimir, e ele está sufocado. Seu coração se retraia, seus olhos corriam as folhas e paravam, paravam e voltavam. Tinham olhos o espreitando, naquela cadeira de coro, a escrivaninha de jacarandá queria morde-lo.
Pedrinho entrou no escritório. Era um jovem promissor, que havia entrado na empresa há alguns anos. Logo notara seu talento e o fizera crescer na empresa, agora ele ocupava um bom posto,o logo abaixo do seu. Apesar de sua inteligência, Pedrinho era um rapaz ingênuo, nos seus traços um ar de moleque, percebia que ele precisava de um referencia masculina, um braço conselheiro e protetor. Havia sido esse braço durante os últimos anos e Pedrinho nunca o decepcionara. Havia uma amizade paternal entre eles saindo as vezes para tomar um chope, as vezes indo na sua casa para um jantar.
- Chefe, minha mulher ta meio doente, posso sair um pouco mais cedo hoje? Ela ta com um resfriado muito forte, não quero deixar sozinha.
-Claro que pode. Mande melhores para ela.
Estava incomodado. Fez o que tinha que fazer de qualquer jeito. Estava repugnado por aqueles papeis, quantas mãos os haviam tocado, quantas palavras cinzentas , que diziam nada. Uma monotonia jogou uma sombra leve no seu coração, e o medo aumentou. O medo de perder o que viera sentindo. E os moveis, e os moveis olhando pra ele. Estavam o recriminando por ter saído de seu lugar, de sua vida. Os moveis que se danem, mando comprar novos, já há anos que nada muda por aqui.Resolveu sair mais cedo também, vou visitar minha mulher.
No caminho comprou flores, as favoritas dela, o mais lindo buque de rosas brancas. Uma caixa de chocolates em formato de coração, parecida com a que ele dera pra ela no seu primeiro encontro. Estava exuberante, apreciando cada instante daquela nova condição. A nevoa de irrealidade o abraçava e ele a abraçava de volta, feliz. Passou pelo mesmo menino, e deu-lhe uma nota de cinqüenta. Seus olhos pareciam fechados, enxergava o mundo por entre as pálpebras, e nem reparou no susto do menino.Colocou uma musica alta no carro, e cantou junto , sem se importar se alguém estaria ouvindo. Abriu a janela , colocou-se para fora, e cantou. Riu de si próprio.
Chegando em casa, abriu a porta de leve, queira fazer uma surpresa. Deu passos suaves sobre o carpete. A mulher deveria estar no quarto, foi devagarzinho até lá. Seus passos largos e vagarosos como em um sonho. A porta estava fechada, abriu-a, sorrindo.
Então, o mundo recuou, e tudo despareceu, parecia que estava diante de um quadro, que não poderia algo assim existir, as cores de misturam em borrões impressionistas, uma nevoa de sonho cobrindo sua vista, um sopro de beleza intensa, e preciosa, um epíteto artístico que pulsava na sua alma. Viu sua mulher deitada na cama, nua e feliz, com um homem jovem a penetrar-lhe a carne. E ela estava linda, sua banha branca, seus peitos caídos, incrivelmente linda, seus cabelos caindo para trás, suas caretas de prazer e os gemidos por pudor sufocados.O homem como um animal, a segurar-lhe as ancas violentamente, os músculos das costas contraídos e suados, uma forca ancestral emanando de sua boca ávida que vasculhava aquele corpo flácido.Uma obra de arte da natureza, tão bela e esquisita, como um coral das profundezas escuras, como uma pavão em um lixão. Perdeu o fôlego diante daquele espetáculo. Contemplou aquela beleza salvatoriana, incapaz de falar ou se mover, degustando o frêmito de selvageria daquela mulher e daquele homem.E o homem se virou assustado , e ele viu Pedrinho , com os olhos arregalados de pânico, parando o que estava fazendo, surpreendido, assustado. Quis dizer para que continuasse, que não se incomodassem com ele ali, que não o privassem daquela beleza, daquela vida quente. Continuem, não parem, sejam o que são, sintam esse calor, porque assim eu também o sinto. Mas sua boca não se mexia.Pedrinho desajeitado, balbuciava um ruído distante. Sua mulher tentava se recompor, colocar uma roupa ,e gritava, histérica, começava a se debulhar. Não entendia nada do que falavam nem queria entender. Sentiu subitamente que estava com raiva.
Porque haviam parado? Não o achavam digno de vê-los trepando ? Porque interromperam o espetáculo?Não viam que eu queria que continuassem, que queria me embebedar desse grotesco? Pedrinho se aproximou, e com a raiva a vibrar-lhe nos músculos, deu um soco na cara do rapaz, que caiu no chão . Sua mulher gritou histérica. Que voz irritante , meu deus. Então, ele saiu do quarto ,e foi para rua, a pé mesmo, na calçada em frente ao prédio.
Parado na rua, muitos passavam, de um lado para o outro, indo e voltando, o som de uma buzina, um pássaro na arvore, o porteiro do prédio, o som rústico de um ônibus, um motoqueiro que passa veloz, um ambulante que lhe oferece um refrigerante, uma senhora se arrastando em cima de um salto, uma criança com um algodão doce, um bebê que chora, um aleijado que pede uma esmola, um conversível vermelho, um fusca azul velho e sujo, um poste e uma lixeira, um apito e um policial, o céu sob tudo isso e o chão bem abaixo. Em um raio compreendeu tudo.
Estava sonhando.
O mundo se dissolveu naquela névoa de irrealidade. Estou sonhando, nada disso é real, nunca foi, eu que não acordei hoje de manhã. Estou do lado da minha mulher, no lado esquerdo da cama, como sempre estive e sempre estarei. Eu quero acordar, quero acordar, porque de sonhos já me basta, não quero sentir assim ,como se tudo tivesse uma cor ou uma vida, quero a minha vida de volta, quero ser o que sempre fui, quero meu lugar-comum, minha mediocridade, quero tudo de volta.
E não sabia como ia acordar. Andou ate a praia ali perto, e de roupa social mesmo se jogou no mar. Mergulhou e mergulhou, sentindo a água fria, nadando debaixo dela. Mas não acordava. E se eu nunca acordar? Se estiver condenado a esse mundo? Não seja tolo, todo mundo acorda, não existe sono que seja eterno, só a morte, mas se estivesse morto não estaria sonhando. E mergulhou de novo ,de novo , até se cansar e se sentou na areia.
Beliscou-se até se machucar. Nada.Foi parar em um barzinho, tomou um café. Nada. De volta pra praia, lembrou-se de um sonho. Antigo, já o sonhara mais de uma vez. Estava caindo de um prédio bem alto, rápido, via o chão de aproximando, e um medo angustiado no coração. E quando estava para tocar a calçada lá embaixo, acordava. Era isso.
Ainda molhado, pegou o carro. Foi até o escritório, estranharam-no entrar no prédio daquele jeito. O elevador não chegava, olhavam-no assustado. Pegou as escadas mesmo, subiu o prédio todo, até o telhado, quatorze andares, e lá subiu no parapeito e olhou para baixo. Hora de acordar.
Ninguém entendeu o suicídio daquele homem. Parecia um sujeito feliz, bem de vida, bem casado. Sua mulher, a secretária, e Pedrinho choraram no seu enterro. Ela ficou feliz com herança, ele também, a amante o amaldiçoou por não ter deixado nada para ela. Até hoje, não sei se ele chegou a acordar.
Homem sério, respeitável, de muitos bens e bons ternos. Vivia entre aspas, na polidez letárgica do dia a dia, com a alma cansada para justificar a inércia. Esquecera-se do que era amor. Seu casamento sobrevivia na preguiça, no medo tímido do divorcio, dos seus advogados e da divisão de bens. Por outro lado, não tinha motivos para se separar. Falta de amor não é motivo para separação. Para que se estressar?
No trabalho era um primor, eficiente e bem sucedido. Um burocrata com vocação para burguês. Trabalhava em uma empresa de renome. Seu emprego não o agradava. Igualmente não o desagradava. A diferença principal nessa equação era o contra cheque no final do mês. Seu sonhos? Achava que nunca os tivera. Não almejava sumir mais na vida, estava bom o que tinha. Quem muito quer nada tem.
Esse homem se deitou e dormiu. Uma noite com sonhos banais, não os lembraria como nunca se lembrava. Sonhou com um velho amigo, campos floridos, um carro novo, a cena de um filme água-com-açúcar que vira semana passada. As sete em ponto, seu despertador toca e ele acorda.
Levantou-se, esmerando em não acordar a mulher, que reclamaria, e tomaria café com ele. Seus pés tocaram o chão. Sentiu algo diferente. Relaxado, renovado, como quem sai de uma banheira de hidromassagem. Estranhou, pelo visto dormira bem. Foi ate o banheiro.
Levou um susto. Algo havia mudado ali, algo errado pairava no ar. Olhou ao redor. Tudo no lugar, o vaso, a pia, o jarro de flores de plástico, os produtos de beleza, sabonetes, perfumes, toalhas coloridas. Observou o banheiro, se ajoelhou para olhar de baixo, vasculhou cada canto. Algo mudou aqui, não é o meu banheiro, meu nome está nas inicias da toalha, e esse piso ,eu que escolhi, mas não, esse não é o meu banheiro. Revirou as gavetas, tudo no lugar. Verificou os perfumes, eram os seus ou os dela.
Então , o viu. Parado diante dele, um homem de meia-idade, do outro lado do espelho. Reparou que seu reflexo parecia mais real que ele próprio. Sentia-se etéreo. Não, o mundo é que estava etéreo, tudo possuía uma estranheza, meu deus, o que aconteceu comigo. Molha o resto com água fria. Uma vez, duas. Se olha de novo espelho , e se sente absurdo. Absurdo ter alguém como ele o olhando, o copiando, do outro lado de um pedaço de vidro.A lguém mais real do que ele.
Depois do banho , um novo susto. Sentira a água morna deliciosa sobre seu corpo, sente- a brincando sobre sua pele, acariciando-a. Forma-se uma nuvem no banheiro e ele sente como se o mundo fosse se dissolver nela. Então, lá estava ela.
Era a mulher com que tinha casado. Seu corpo flácido, seus pés –de - galinha e olhar apático. Os cabelos de um louro desbotado, mal cuidados e embolados. Ela estava linda , nunca a vira tão bela. Assustou-se com seu coração batendo mais rápido, assustou-se com a onda de ternura que atravessou sua espinha e ele a beijou. De leve, no rosto, com carinho. Ela recuou,”que que te deu? Você não é de fazer essas coisas”, “eu sou seu marido”. Foi tudo que conseguiu falar e saiu do banheiro.
Sentia-se cada vez mais irreal, seu suco de laranja tinha gosto do vento nos laranjais, e o seu pão tinha gosto de mãos de camponesa, daquelas que batiam os pães em outros tempos. E sua mulher, linda, reluzente. Ela o olhava de um jeito estranho, e sorria as vezes. Na verdade, sorria de escárnio, e já começara a se irritar com o surto de afeto do marido.
Saiu para uma reunião de negócios. No carro, ligou para Helena, sua secretaria. Conversaram, combinaram onde se encontrar. Dirigiu até o motel de sempre, lugar discreto e não muito caro.
Quantos carros, quantos carros, as luzes do sinal, não prestava atenção, quase atropelou um pombo, o sol estava lindo e humilde sobre a copa de uma arvore. Concluiu que estava feliz, não estava cansado. Quantos carros , meu deus, cada carro de uma cor, cada cor em um carro, e ônibus, gordos e flácidos, violentos nos seus barulhos e lá dentro, rostos que o fascinaram por não serem o seu.
Seu carro avançava pelas ruas e as ruas pareciam que recuavam na realidade, o tempo se alargando rapidamente. Viu formas nas fumaças dos carros e de repente parou no vermelho de um sinal. Um menino jogava bolas de tênis ali, ele já o vira antes, já ate mesmo lhe dera uma ou duas moedas.Era magro , estava sem camisa, parecia triste.
E em um súbito esgar, seu coração se expandiu e ele sentiu a sua distancia para aquele menino, um raio de consciência. Sentiu não como uma dor, não com um peso, mas como uma realidade densa e fria. A realidade de sua infância confortável, cercado de brinquedos e amor, das suas viagem para Disney e para a casa de praia. A realidade que era ele estar sentado naquele carro, vestindo um terno , no ar-condicionado, indo encontrar sua amante, enquanto lá fora um menino se esforçava para ganhar um milionésimo do seu salário. A realidade que era ele ser ele e não o menino, o peso da infindável teia de eventos, fatos e acasos , que o colocara ali, dentro do carro, e o menino ali fora. A injustiça essencial dessa desigualdade, como se o universo mesmo estivesse errado, e viu-se culpando o universo, Deus, não acreditava em deus, mas queria acreditar apenas para poder culpá-lo por aquele absurdo. Absurdo, aquilo era absurdo , o menino era absurdo, uma peça fora do lugar no jogo da existência. Seu short barato era absurdo, a mãe gorda e grávida a espreita numa arvore era absurdo, o olha cansado do menino era absurdo, absurdo, aquilo não era real, não era.
O carro de trás buzinou. O sinal está aberto.Acelerou. Sente raiva do menino, ele o tirara mais ainda se seu mundo,sentia-se mais ainda, surreal. Era culpado, para que uns tenham outros tem que não ter, era culpado por aquele menino não ter infância, e não sentia remorso.Sentia raiva pela existência dele lhe impor essa culpa..
Chegou no motel. A secretária o aguardava na suíte, o corpo perfeito enfeitando uma lingerie de renda magnífica, o arfar leve de seu peito enorme. Estava deitada em um sofá, fumando lânguida um cigarro, os cabelos escorrendo por sobre os braços do móvel.
Ficou parado na porta , olhando aquilo. Ele era casado, e tinha uma amante. Uma amante mais jovem e mais bela de sua mulher, que fodia infinitamente melhor, que dizia que o amava ao ponto de ele quase acreditar, uma amante que estava com ele somente pelo dinheiro, e ele que estava com ela somente por sexo, uma tentativa frustrada de sair da monotonia enclausurante que era sua vida, falha, pois ele não a amava, e o sexo por sexo ficou chato, e às vezes nem ele nem ela gozavam, mas fingiam, e como fingiam, ela se contorcendo toda, em uma série de gemidos que pareciam previamente ensaiados, meu deus, eu sou um homem casado, tenho uma mulher, e há quarenta minutos descobri que ainda a amo.
Transaram ali no mesmo no sofá , ele com um vigor súbito, sentindo estremecer a pele ao toque experiente dela, sentindo-se cada vez mais distante a medida que o prazer se aproximava. As paredes do quarto pareciam se afastar, os instantes se atropelavam, as caretas de prazer dela tinham algo de inumano, de animal, de presa e caçador, e quando gozou, seu gozou ardeu na sua alma, algo se quebrou, ele se sentou esbaforido, suando frio.
Nunca sentira remorso por trair sua mulher. Achava algo banal. Agora, também não sentia remorso, mas uma simples estranheza, que saltitava no seu peito, uma grande ironia de escárnio pairando no seu ar. .Porque ele havia visto o amor hoje pela manhã, visto seu rosto tímido espiar pela fresta da porta do mundo, vira o amor em sua mulher, sentiria o amor espreitando dentro de si, vira o amor no seu olhar para o mundo, e então ele compreendeu, porque tudo parecia tão estranho.
Pois agora seu coração era jovem, e podia amar, e a letargia da vida esvanecia, e com ela seu mundo.
Levantou-se e saiu rápido, deixando a mulher com cara de interrogação no quarto, não deu nem um adeus, simplesmente foi e pegou o carro, rápido para o trabalho, queria estar cedo em casa, queria ver sua mulher, queria tocá-la, acreditava, tinha esperança, de que voltaria a amá-la,talvez já a amasse e não soubesse, e o amor lhe sorria nas mínimas coisas, e era pleno novo, como um amanhecer depois de um longo sono.
E conforme assim se sentia, o mundo recuava, as coisas se tornavam mais leves, como que se sorrissem , uma nevoa de paz obscurecia sua vista, e tudo tinha ar de chuva fresca no verão. Via uma beleza jovem em tudo, nas árvores e seus verdes, nas cores dos carros, nas pessoas na rua, e no azul intenso do céu, cada cor faiscando, sorrindo condescendente para seu coração, para seu coração que podia amar. A realidade cada vez mais atrás, cada vez mais distante e menos querida, se assim era se sentir irreal, nunca mais almejaria a realidade.
Estava no escritório. Uma pilha de papéis. Estava levemente assustado, um quê de temor nos móveis ao seu redor. Muitos sólidos, madeiras caras, tudo muito quadrado e impessoal. Propositalmente feito para oprimir, e ele está sufocado. Seu coração se retraia, seus olhos corriam as folhas e paravam, paravam e voltavam. Tinham olhos o espreitando, naquela cadeira de coro, a escrivaninha de jacarandá queria morde-lo.
Pedrinho entrou no escritório. Era um jovem promissor, que havia entrado na empresa há alguns anos. Logo notara seu talento e o fizera crescer na empresa, agora ele ocupava um bom posto,o logo abaixo do seu. Apesar de sua inteligência, Pedrinho era um rapaz ingênuo, nos seus traços um ar de moleque, percebia que ele precisava de um referencia masculina, um braço conselheiro e protetor. Havia sido esse braço durante os últimos anos e Pedrinho nunca o decepcionara. Havia uma amizade paternal entre eles saindo as vezes para tomar um chope, as vezes indo na sua casa para um jantar.
- Chefe, minha mulher ta meio doente, posso sair um pouco mais cedo hoje? Ela ta com um resfriado muito forte, não quero deixar sozinha.
-Claro que pode. Mande melhores para ela.
Estava incomodado. Fez o que tinha que fazer de qualquer jeito. Estava repugnado por aqueles papeis, quantas mãos os haviam tocado, quantas palavras cinzentas , que diziam nada. Uma monotonia jogou uma sombra leve no seu coração, e o medo aumentou. O medo de perder o que viera sentindo. E os moveis, e os moveis olhando pra ele. Estavam o recriminando por ter saído de seu lugar, de sua vida. Os moveis que se danem, mando comprar novos, já há anos que nada muda por aqui.Resolveu sair mais cedo também, vou visitar minha mulher.
No caminho comprou flores, as favoritas dela, o mais lindo buque de rosas brancas. Uma caixa de chocolates em formato de coração, parecida com a que ele dera pra ela no seu primeiro encontro. Estava exuberante, apreciando cada instante daquela nova condição. A nevoa de irrealidade o abraçava e ele a abraçava de volta, feliz. Passou pelo mesmo menino, e deu-lhe uma nota de cinqüenta. Seus olhos pareciam fechados, enxergava o mundo por entre as pálpebras, e nem reparou no susto do menino.Colocou uma musica alta no carro, e cantou junto , sem se importar se alguém estaria ouvindo. Abriu a janela , colocou-se para fora, e cantou. Riu de si próprio.
Chegando em casa, abriu a porta de leve, queira fazer uma surpresa. Deu passos suaves sobre o carpete. A mulher deveria estar no quarto, foi devagarzinho até lá. Seus passos largos e vagarosos como em um sonho. A porta estava fechada, abriu-a, sorrindo.
Então, o mundo recuou, e tudo despareceu, parecia que estava diante de um quadro, que não poderia algo assim existir, as cores de misturam em borrões impressionistas, uma nevoa de sonho cobrindo sua vista, um sopro de beleza intensa, e preciosa, um epíteto artístico que pulsava na sua alma. Viu sua mulher deitada na cama, nua e feliz, com um homem jovem a penetrar-lhe a carne. E ela estava linda, sua banha branca, seus peitos caídos, incrivelmente linda, seus cabelos caindo para trás, suas caretas de prazer e os gemidos por pudor sufocados.O homem como um animal, a segurar-lhe as ancas violentamente, os músculos das costas contraídos e suados, uma forca ancestral emanando de sua boca ávida que vasculhava aquele corpo flácido.Uma obra de arte da natureza, tão bela e esquisita, como um coral das profundezas escuras, como uma pavão em um lixão. Perdeu o fôlego diante daquele espetáculo. Contemplou aquela beleza salvatoriana, incapaz de falar ou se mover, degustando o frêmito de selvageria daquela mulher e daquele homem.E o homem se virou assustado , e ele viu Pedrinho , com os olhos arregalados de pânico, parando o que estava fazendo, surpreendido, assustado. Quis dizer para que continuasse, que não se incomodassem com ele ali, que não o privassem daquela beleza, daquela vida quente. Continuem, não parem, sejam o que são, sintam esse calor, porque assim eu também o sinto. Mas sua boca não se mexia.Pedrinho desajeitado, balbuciava um ruído distante. Sua mulher tentava se recompor, colocar uma roupa ,e gritava, histérica, começava a se debulhar. Não entendia nada do que falavam nem queria entender. Sentiu subitamente que estava com raiva.
Porque haviam parado? Não o achavam digno de vê-los trepando ? Porque interromperam o espetáculo?Não viam que eu queria que continuassem, que queria me embebedar desse grotesco? Pedrinho se aproximou, e com a raiva a vibrar-lhe nos músculos, deu um soco na cara do rapaz, que caiu no chão . Sua mulher gritou histérica. Que voz irritante , meu deus. Então, ele saiu do quarto ,e foi para rua, a pé mesmo, na calçada em frente ao prédio.
Parado na rua, muitos passavam, de um lado para o outro, indo e voltando, o som de uma buzina, um pássaro na arvore, o porteiro do prédio, o som rústico de um ônibus, um motoqueiro que passa veloz, um ambulante que lhe oferece um refrigerante, uma senhora se arrastando em cima de um salto, uma criança com um algodão doce, um bebê que chora, um aleijado que pede uma esmola, um conversível vermelho, um fusca azul velho e sujo, um poste e uma lixeira, um apito e um policial, o céu sob tudo isso e o chão bem abaixo. Em um raio compreendeu tudo.
Estava sonhando.
O mundo se dissolveu naquela névoa de irrealidade. Estou sonhando, nada disso é real, nunca foi, eu que não acordei hoje de manhã. Estou do lado da minha mulher, no lado esquerdo da cama, como sempre estive e sempre estarei. Eu quero acordar, quero acordar, porque de sonhos já me basta, não quero sentir assim ,como se tudo tivesse uma cor ou uma vida, quero a minha vida de volta, quero ser o que sempre fui, quero meu lugar-comum, minha mediocridade, quero tudo de volta.
E não sabia como ia acordar. Andou ate a praia ali perto, e de roupa social mesmo se jogou no mar. Mergulhou e mergulhou, sentindo a água fria, nadando debaixo dela. Mas não acordava. E se eu nunca acordar? Se estiver condenado a esse mundo? Não seja tolo, todo mundo acorda, não existe sono que seja eterno, só a morte, mas se estivesse morto não estaria sonhando. E mergulhou de novo ,de novo , até se cansar e se sentou na areia.
Beliscou-se até se machucar. Nada.Foi parar em um barzinho, tomou um café. Nada. De volta pra praia, lembrou-se de um sonho. Antigo, já o sonhara mais de uma vez. Estava caindo de um prédio bem alto, rápido, via o chão de aproximando, e um medo angustiado no coração. E quando estava para tocar a calçada lá embaixo, acordava. Era isso.
Ainda molhado, pegou o carro. Foi até o escritório, estranharam-no entrar no prédio daquele jeito. O elevador não chegava, olhavam-no assustado. Pegou as escadas mesmo, subiu o prédio todo, até o telhado, quatorze andares, e lá subiu no parapeito e olhou para baixo. Hora de acordar.
Ninguém entendeu o suicídio daquele homem. Parecia um sujeito feliz, bem de vida, bem casado. Sua mulher, a secretária, e Pedrinho choraram no seu enterro. Ela ficou feliz com herança, ele também, a amante o amaldiçoou por não ter deixado nada para ela. Até hoje, não sei se ele chegou a acordar.
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