segunda-feira, 11 de abril de 2011

A Morte do Pai

Quando Pai morreu, nem todos os filhos choraram. Morto por um de seus filhos, uma tragédia. O Sol se punha no oeste, ou será que estava nascendo? Naquele momento, ninguém parecia reparar nisso. Depois de tantos anos, tantas brigas e tantos amores, o Pai finalmente se fora. Estavam todos órfãos. Sozinhos, sem o pulso forte para guiá-los, o abraço protetor na noite escura, ou o conto de fadas para fazê-los dormir durante a tempestade. Se algum dia tiveram uma Mãe, nunca saberiam, o Pai nunca fora muito chegado a mulheres. Primos, tios, avós? Ninguém. O próprio Pai fora Ele um órfão.
O filho mais velho não chorou. O Pai não estava morto, Ele não podia morrer. Sua morte era uma ilusão, Ele apenas dormia, descansava. Nunca aceitaria fim tão súbito, tão repentino e inglório, sem sequer um abraço de adeus. Idolatrava o seu velho Pai, Ele era tudo para ele. Toda sua vida se moldara por Ele, sacrificara tudo por Ele. Via na Sua imagem o que há mais de sublime, mais belo e mais perfeito, seguia Sua palavra nos mínimos detalhes. Obedecera-O em tudo, moldara a si próprio, dos seus pensamentos ao seu corpo, por essa obediência, fora de todo o filho mais exemplar e talvez o mais querido. Nunca suportaria a dor de perdê-Lo, pois O perdendo perderia a si próprio.
Mas no seu íntimo, por mais que negasse, não podia esquecer o cadáver frio diante de si. Ali havia uma sombra de dúvida, que por vezes perpassava seu pensamento, corroia-os de leve e por fim se vestia de remorso. E na dor roxa do remorso, esses pensamentos fugiam ou se escondiam. Assim, continuou dirigindo ao Pai suas súplicas, e era Nele que pensava nas noites frias. Via seu fantasma em todos os lugares, no quebrar das ondas na areia, ou no sorriso da lua nas noites mais brilhantes. Dizia até que conseguia ouvir-lhe a voz, quando o silêncio caía sobre o mundo e sua mente se esforçava. Saiu pelas ruas conclamando em altos berros que o Pai não morreria, que fora e seria eterno. Muitos dos órfãos do mundo o seguiram e acreditaram. Muitos dos que nunca tiveram pai, muitos do que haviam negado os seus. Todos seriam adotados, todos teriam seu lugar. E Ele os protegeria, e os educaria, o filho obediente sempre teria seu lugar guardado. No filho mais velho miraram seu exemplo, e o seguiram em sua loucura.
E quando os outros os chamavam de louco, e com coragem lhe diziam a verdade na cara, eles os o odiavam, porque por mais que em seus lábios e consciências o Pai ainda vivesse, a dúvida sempre se insinuava, em algum reflexo no espelho ou em algum pensamento mal-quisto. Afastaram-se dos seus outros irmãos, não queiram nada com eles, “Vocês querem nos afastar do Pai! querem que Ele nos odeie!” E quando lhe perguntavam: Mas então onde está o Pai afinal? Ora está aqui, não está acolá, outro dizia: É claro que só pode estar aqui! Pelo visto o Pai se mudara para os olhos de cada um, e desse jeito nada poderia ser feito. Com o tempo a própria lembrança do Pai foi evanescendo, tal como os restos da chuva quando o Sol aparece. As palavras do Pai tornaram-se as palavras dos filhos, o que se dizia sobre o Pai acabou-se por tornar-se o próprio Pai. Do Seu rosto, talvez só as estrelas se lembrassem.
A filha mais velha chorava, lamentos altos e assustadores. Suas lágrimas eram frias como o medo, ela amara seu velho Pai, amara-o muito, um amor ferroso, coroado pelo respeito e pela distância. Sentia falta do Seu abraço protetor, de Suas palavras, da forma como ele espantava seus medos com um simples sorriso. Mas em seu coração, em algum compartimento mais oculto, se agitava uma sensação suave, trêmula... algo como uma brisa em um dia quente...algo como alivio?
Com o Pai se fora seu porto seguro, seu protetor, mas também os olhares severos, as regras rígidas, a forma como ele se ria dela às vezes, a forma como ele a colocava diante dos irmãos. Tudo que ela sabia fora que o Pai que lhe ensinara, e o mais valioso ensinamento, fora o vermelho da vergonha, o vermelho por ter em si um útero, o vermelho que lhe cobria como um véu e que ela aprendera a aceitar e respeitar com veemência sacra, por mais que no fundo nunca de fato o entendesse. E nisso, estava seu tímido alivio, que com medo seu espírito forçava por calar, uma represa para um rio do qual ela receava a correnteza.
Chegando em casa, olhou-se no espelho. Não era ela que estava refletida ali, o que via era o amorfo de uma vermelhidão, tocada pela luz do Sol dúbio lá fora, e quando olhou pela janela, os raios de luz lhe disseram que era o nascer do dia. Então, lhe acometeu um agitar-se de bravura, agitar novo em seu coração de cabeça baixa, e em um movimento brusco e rápido, despiu-se, um mar de panos caindo no chão, levantando para o céu em desafio o pó avermelhado de tantas eras. Pela primeira vez nua. Nua, e mais do que nua, bela, nos seus lábios uma frase se insinuou e com força lançou-se para fora: Sou mulher! Era mulher e o peso dessa súbita revelação, sim, sou mulher, o peso caiu sobre ela como a primavera cai raivosa sobre o inverno. Gritou para o Sol lá fora, e ele sorriu. Sou mulher, sou bela, sou mulher. Ergueu as mãos lentamente, tocou-se, explorou o mistério de si própria, de sua carne, de sua pele, o maior de todos os mistérios, escondido por tanto tempo. Deliciou-se no sabor do novo, entregou-se ao êxtase daquilo que sempre a precedera, daquilo que sempre caminhou com ela, mas na covardia de tantas correntes, mantivera preso, incapaz da coragem que era encontrar-se. Sou mulher, gritou, os mantos rubros caídos no chão, nua, sem a vergonha pra lhe cobrir o corpo, sem o medo para lhe agraciar com pudor.
Então foi até o pomar e lá comeu todas as maçãs que viu. Deliciou-se na lascívia do fruto por tanto tempo proibido, solvendo com graça seu gosto vermelho, um novo vermelho, agora cor de sangue, cor do sangue secreto que corre debaixo da pele. Comeu até não mais agüentar, e saciada deitou-se no chão verde, ouvindo embaixo de si o suspiro doce da Terra, ela própria uma mulher, a mais velha e calejada de todas. Embalada pela graça desse som, deixou-se levar pelo caminhar das horas, deixando com que o Sol finalmente apreciasse sua nudez, que espalhasse sobre ela sua mão quente, que levasse embora as teias de escuridão que se escondiam em seu corpo.
Surgiu um homem no pomar, e ele tremeu diante da mulher nua. Ele próprio conhecera o Pai, e algo lhe fora dito sobre os perigos do que brilha em nudez. Ela o viu, e levantou-se. Caminhou até ele, altiva como uma rainha, seus olhos mais sedutores do que qualquer serpente. Alcançou-o, e no silêncio do temor que o fazia hesitar, ela tocou-o sem receio ou vergonha. Sentiu nele a beleza do homem, sem a máscara dura dos olhos do Pai, sem o medo que um homem deveria inspirar. Possuiu-o, devorou-o, fez dele o seu homem. Amaram-se ao pé da macieira, e até mesmo esta se encantou com os dois.
A mulher descobriu o amor e o apresentou ao homem. E juntos descobriram a felicidade. Saíram juntos pelo mundo, experimentando dos mais rudes aos mais sofisticados prazeres. Acabaram por se separar em alguma esquina do tempo, e ela seguiu sozinha em seu caminho. O mundo era belo, era pulsar quente de vida, era pura música, música tocada por uma orquestra de infinitos músicos, que com as cordas do tempo faziam do mundo seu instrumento. Assim, como quem dança, ela seguiu seu caminho. E nele, experimentou outros homens, e também outras mulheres, conheceu o amor na diversidade de suas formas, de seus gostos. O amor no brotar das flores na primavera, o amor no toque do outro em seus cabelos, o amor do pássaro que ensina seus filhos a voarem, o amor nas mesas de bar, o amor em ser mulher, o amor de mesmo sendo mulher ainda poder ser homem, o amor que se põem junto com o Sol e volta junto com a Lua, o amor por um único, o amor por vários, o amor das mulheres, o amor dos homens. E não vou dizer que não houve dores, tristezas, desilusões. Mas em cada rosa há sempre um espinho, cada dor era um prenúncio de nova alegria, cada sonho desfeito era tijolo para um novo sonho, e assim ela viveu. Cada dia era uma nova aventura, cada nascer do Sol uma nova emoção, cada gosto, cada cheiro, cada desejo. Algumas vezes encontrou seu irmão mais velho, que lhe gritava insultos e lhe rogava pragas. Ela ria, apenas ria, e até mesmo sentia pena do seu pobre irmão, insano e já tão velho.
E assim houve um dia como outro qualquer, em que o tempo finalmente deixou cair sobre ela seu peso. Cansada, deixou-se cair sobre o colo da terra, e mais alto do que nunca ouviu a música que vinha do mundo. Nesse instante, espremida entre o Céu e a Terra, com o Sol como única testemunha, ela se tornou Mãe.

Um dos gêmeos também chorava. Pobre criança que era, sempre tão mimado pelo Pai, tão dependente de Sua onipresente orientação! Como poderia viver sem alguém para lhe perdoar quando errasse? Para guiá-lo quando se perdesse? Era jovem, e até mesmo ingênuo, mas por mais que em algum momento tenha tentado, não conseguiu abandonar-se ao sonho, a loucura, como seu irmão mais velho fizera. E assim, o cinza do luto caiu sobre o mundo, todas as cores mortas junto com o Pai.
De súbito sua existência perdera o rumo, perdera o braço forte que sempre lhe guiara, e em seu espírito não havia força o suficiente para que andasse só. Tudo ao redor guardara uma marca do Pai, uma lembrança doce e bem guardada, um ensinamento sobre isso ou aquilo. E isso lhe doía, lhe enchia de pavor, pois sabia que seus passos não teriam mais rumo. Mas seu coração era jovem e quente, e mesmo com a bússola quebrada, resolveu fugir, deixando para trás a existência que conhecia, maculada pela lembrança do Pai. Desafiou com impertinência o medo que sentia, o medo do andar desnorteado, o medo da liberdade daquele que não tem mais mestre, e coberto de desespero, jogou-se ao encontro desse mesmo medo, perdido lançando-se á perdição.
Caminhou muito, por terras próximas e distantes, indiferente ao sol e a lua. Aos que o vissem diriam que não passava de uma reles sombra se esgueirando sobre a terra, vestido em melancolia, manchando a paisagem com um borrão sinistro. E não muito diferente era como ele próprio se via, calçado em dor, deixava com que os sapatos levassem seus pés, em um mundo estéril de som e de musica.
Mas soube a sorte, por piedade ou por tédio, fazê-lo chegar a uma terra de Sol forte e ventos afiados, onde entre seus olhos turvos de lágrimas secas, acabou por avistar homens morenos, de roupas estranhas. Aproximou-se tímido, observou-os ao longe. Esses homens tinham um Pai, como ele próprio tivera um dia, e ele pôde ver a forma como eles o reverenciavam, a forma como dirigiam a Ele suas súplicas, a forma como Ele cuidava deles. E meu deus, como Ele era parecido com seu próprio Pai! Seria algum tio seu, primo ou quem sabe avô? A semelhança fez com que seu coração gritasse, um grito libertador de esperança em um espírito que já parecia ter desistido.
Com coragem largou seu esconderijo, e foi em direção aquela família estranha, todo seu espírito esperando de alguma forma ser aceito, poder compartilhar da presença daquele Pai tão parecido com o seu próprio, e quem sabe até mesmo ser adotado. Porém, foi recebido com desconfiança e escárnio, palavras rudes e gestos agressivos. Implorava por uma chance, “Deixem-me ficar um pouco com vocês, sou órfão e só queria me lembrar por um instante como é ter família!” E o enxotaram , e o humilharam. “Sou como vocês! Quem sabe não somos até mesmo parentes? Em vão, não o ouviam, não o entendiam e nem queriam entender.
Foi então que o Pai viu o que se passava, e apareceu diante dos filhos, e disse-lhes, para que aceitassem o recém-chegado “ No coração de um Pai devem ser recebidos todos os que quiserem entrar”, e com relutância os irmãos o deixaram em paz. Ficou com eles, estabeleceu-se naquela terra árida, e lá aprendeu seus hábitos, sua essência. Amou o novo Pai, Ele também o amou, e cada vez mais Ele lhe lembrava o seu próprio, nas palavras, nos gestos, nas ordens. Com o tempo acabou por ser plenamente aceito, e ninguém mais se lembrava de que um dia ele fora um estrangeiro. A memória de seu próprio Pai, há tanto tempo falecido, acabou por fundir-se na presença de seu novo Pai, acabando ele por esquecer que não fora naquela família que nascera.
O outro gêmeo não chorava. Não que não sofresse, mas apenas o luto assustara suas lágrimas e elas preferiram timidamente permanecer nas pálpebras. Ele era tão parecido com seu irmão gêmeo, tão imaturo, tão mimado! Não desenvolvera em si o hábito da decisão, o gosto pela independência, pobre ovelha que era, agora sem seu pastor. Mas ao passo que o espírito de seu irmão era fogo, o dele era mais como a água, e não lhe houve instinto ou força para que fizesse caminhar. O mundo era escuro como o luto, e ele também se tornou assim.
Foi para casa, o seu norte ainda aparecia na bússola quebrada. De lá nunca mais saiu. Sentou-se na sua cadeira favorita, no centro da sala. A dor tornara-se tão intensa, corria nos seus ossos, lhe tomava a pele. O Pai fora pra ele o caminho, sua mensagem, seu comando e afeto abundara em tudo que existia, cada pensamento seu fora de alguma tocado e moldado por Ele. Perdendo a Ele, perdera a si próprio, e por azar também não tinha talento para a loucura, não poderia negar nunca a morte que lhe saltara aos olhos e ao espírito.
Então se entregou a dor, ao pesar. Estava diante do abismo, e ele lhe sorria, o que mais poderia fazer senão se jogar? E se jogou na mais profunda dor e para protegê-la cercou-se de muros de solidão. Viu de sua janela seus outros irmãos, e percebeu que os desprezava. O mundo de fora estava infectado pela falta de significado, sem o Pai cada movimento perdera seu guia, tornara-se fútil negação, toda a vida perdera seu sentido, qualquer coisa que se pudesse fazer, tudo era futilidade, era mentir. Sem o Pai o mundo perdera seu mastro fixo, tornara-se efêmero suceder de momentos vazios e etéreos. Eram todos tolos, tolos ao declamaram sua loucura, tolos ao se entregarem a ilusão do amor, tolos ao respirar e tolos ao dormir, e assim os desprezava. Um dia parou até mesmo de olhar a janela. Tamanho se tornou seu luto, que nem mais os raios de luz tinham coragem de entrar, e a escuridão da noite assustou-se com sua negritude.
Porém, a própria dor com o tempo foi se cansando de existir, a dor era tão fútil quanto todo o resto, ele pôde entender. Os gritos sufocantes de seu espírito tornaram-se suspiros, a dor esganiçada tornou-se complacência, e o luto tornou-se inércia. A dor que como dor ainda era vida, ainda era revolta, movimento, resolveu abandoná-lo. A aceitação plena, sincera e absoluta do sofrimento , do absurdo que era a vida sem o Pai, tal como uma estrela em ebulição flamejante se torna um buraco negro, transformara-se em um vazio profundo, mais do que um vazio que em si é uma ausência,mas sim,o Nada, indajeticvável Nada .No Nada o mundo deixou de ser o mundo, a dor deixou de ser dor, a efemeridade de ser efêmera. Encontrou então, a Paz, mas paz não seria a palavra adequada, nem felicidade, tranqüilidade ou calma. Acredito que não exista palavra para descrever o que ele sentiu, talvez somente o mais asceta dos monges possa entender. Ao compreender dentro de si o Nada, ele tornou-se Nada. Os dias vieram e passaram, as noites e as manhãs, e por fim levaram de seus ossos as carnes, de suas veias o sangue, da sua vida o sopro. Porém, quando seu corpo finalmente pereceu, há muito tempo que já não estava mais lá.
O Pai fora morto por um de seus filhos. O filho mais novo, o caçula, criança arteira e curiosa. Sempre importunando o Pai com um sem fim de pergunta, porque assim e não daquele jeito? , por que a vida e por que a morte, por quê? Tinha no seu espírito ímpeto aventureiro, um espírito artístico de grande criatividade. Adorava jogos de imaginação, brincar de faz-de-conta, desenhar, escrever historinhas. Sua atividade preferida era esculpir no barro ou na argila, pequenas estátuas, bonecos, objetos engenhosos e abstratos, o que quer que surgisse em sua imaginação. Gostava principalmente do barro, porque certa vez quando era ainda bem criança, o Pai lhe contara que ele e seus irmãos haviam todos nascidos dessa substância, esculpidos por Sua mão. Esse pequeno conto, ele o achava de excepcional beleza e fermentava sua imaginação. A possibilidade de criar o fascinava, e mais ainda a esperança infantil que uma de suas humildes esculturas algum dia ganhassem vida, e saíssem pelo mundo voando, nadando. O Pai aprovava esses feitos imaginativos, mas algumas vezes procurava impor limites às idéias do filho, mas no final acabava por apreciar os resultados.
Entretanto o caçula às vezes desobedecia ao Pai, olhando onde não devia, saindo de casa escondido, perguntando sobre aquilo que não deveria ser perguntado. Era rebelde, não entendia a rigidez do “Por que sim, por que não”, preferia o lobo a ovelha. Achava engraçada a submissão temerosa de seus irmãos, a vocação que tinham para escravos, e o prazer que pareciam sentir nisso. Mas mesmo rebelde ainda era amado por seus irmãos, e o Pai, por mais severo que fosse, ainda brincava com ele, lhe dava alguns doces de vez em quando, respondia algumas de suas perguntas mais simples.
Não vou dizer que não amava o Pai, esse pequeno assassino, mas seu amor era diferente. Não era o amor de um cão por seu dono, mas o amor daquele que admira, o amor daquele que com silenciosa e respeitosa inveja, deseja torna-se igual. Tinha seu Pai como modelo, como exemplo, mas não suas palavras, ditos, ordens, ensinamentos, mas sim Ele próprio, seu poder, sua sabedoria.
O Pai tinha uma caixa guardada, proibido a qualquer um dela se aproximar, lá Ele guardava seu maior Segredo. Dizia-se que o primeiro de todos os seus filhos, um dia havia tentado se aproximar dessa caixa, e por pouco não conseguiu, tendo o Pai ao descobrir, o banido para sempre como traidor, tirando dele até mesmo o direito de se considerar Seu filho. Esse desgarrado, pelo que se dizia , havia vagado pelo mundo em remorso, até achar refúgio em algum lugar debaixo da terra, onde longe do amor do Pai, havia se tornado um monstro terrível, com chifres e tudo. Essa história contada pelo Pai, junto com todos outros contos de bicho-papão e homem-do-saco, havia espalhado terror e receio entre todos os irmãos, mas o caçula por mais que com elas se assustasse, sempre suspeitara que eram nada mais do que simples histórias. E tinha grande curiosidade de um dia abrir essa caixa, descobrir finalmente o segredo que o Pai tanto escondia, desvelar a distância que O separava de seus filhos.
Então, com excepcional irresponsabilidade, o filho mais novo, um dia foi até os aposentos do Pai, determinado a finalmente descobrir tal segredo. Aproximou-se da caixa, o peito pulsando rápido, suor gélido brotando de sua pele. Suas mãozinhas tremeram ao tocar na tampa da caixa, ela parecia tão velha quando o próprio mundo, a palavra “Verdade” escrita nela. Ele estava apavorado. Mas não poderia parar uma vez indo tão longe, e então a abriu. Durante um mínimo segundo olhou para o lado, ao tempo de ver o Pai na soleira da porta.
O filho mais novo chorava no enterro do Pai. Um choro quieto e envergonhado. Nunca imaginara as conseqüências de seu ato, nunca imaginaria que por uma simples caixa seu Pai morreria assim, como que atingido por um raio, do nada. Mas ele vira o Seu segredo, e ele o carregava consigo. A excitação da sua descoberta, por mais que ele nem para si próprio admitisse, em muito superava seus sentimentos de remorso e perda. Inclinado para o futuro que o esperava, não conseguia sofrer tanto pelo que ficara para trás. O que ele vira na caixa era algo que só ele poderia ver, algo que falara fortemente a seu espírito, como um chamado ou um grande desafio Um pintor veria um pincel e uma tela; um escritor, papel e lápis; a criança viu seu brinquedo favorito, veículo de sua imaginação: o barro.
E com ele o filho mais novo modelou no mundo o próprio mundo, dando a ele seu espírito, sua mente fervilhante em um incêndio de novas idéias. Tudo parecia diferente, tudo possuía em si uma novidade, tudo era matéria para seu espírito criador. Deu a cada coisa um número, um peso, um valor, uma quantidade. Criou inúmeras relações: da água que cai na chuva a que jaz no mar, do movimento da terra a posição das estrelas, do bater de asas de uma borboleta ao poder de um furacão. Catalogou todos os animais, criou olhos capazes de ver as mínimas criaturas, deu a cada coisa uma função, deu um porque ao respirar das árvores, ao bater do coração.
Mais do que isso, criou artefatos, antigo sonho de criança de ver vivo o que seu espírito modelava. Artefatos que o fizeram voar mais rápido do que um pássaro, e ir tão fundo nos mares que nem o Sol ousava acompanhá-lo. Foi até mesmo a Lua, e lá viu a Terra como só as estrelas a viam. Conseguiu curar doenças antes mesmo delas se manifestarem, fazer alguns cegos enxergarem, alguns coxos andarem, alguns surdos ouvirem. Mas também criou novas enfermidades, novas armas, e o mais terrível de seus brinquedos, capaz de com um simples movimento, destruir qualquer cidade, em qualquer lugar.
Ele havia crescido, se tornado homem adulto, forte e saudável, cada vez mais poderoso, cada vez mais parecido com o Pai. Muitos o seguiram, admirados por suas realizações, e os que o temiam também o seguiram por temor. Embora muito do que criasse, fosse inspirado no rosto de seu Pai, na suas idéias, negava tudo o que Ele um dia dissera. E como o falecido não poderia defender-se, tornou-Se esquecido e desacreditado.
Porém, o irmão mais velho nunca esqueceria o Pai, ou pelo menos a imagem que sua mente dele fizera, e com ódio e desconfiança ele observava o seu irmão mais novo, suspeitando de que por culpa dele que o Pai dormia há tanto tempo. Procurou destruir tudo que ele criava, brigaram seriamente, chegando mesmo as vias de fato. Esqueceram por completo que tinham tido as mesmas origens, que eram irmãos. Agora eram inimigos, ora lutando, ora em trégua. Mas com o tempo, o pobre velho não pode mais enfrentar a força juvenil de seu irmão, e desacreditado por tudo e por todos, isolou-se do mundo. Aos olhos deste passou a ser visto apenas como uma curiosidade, uma lembrança interessante de um tempo felizmente já acabado.
Mas eis que o caçula tem seus próprios filhos, e agora ele era Pai. Dizem que os filhos reproduzem em seus rebentos, o mesmo comportamento que seus pais tiveram com eles. O Pai não era diferente, agindo com Seus filhos, como Seu próprio pai agira com Ele, dando-lhes ordens, impondo-lhes comportamentos, idéias, e principalmente mantendo oculto deles o Segredo que há tanto tempo roubara de certa caixa. Também consolava Seus filhos em noites tempestuosas, mas não com conto-de-fadas, mas com o que Ele chamava de Fato, criação Sua muito em voga e bem aceita. Orientava Suas crianças, dava-lhes um caminho, uma bússola e um sentido, tal como Seu pai fizera, apenas mudando as palavras, o conteúdo, o método. Era muito amado, muito respeitado, todos recorriam a Ele, o mundo era Seu.

Houve então, de um de Seus filhos, de todos o que mais se parecia com Ele, ter igualmente tanta curiosidade, e tão pouca vocação para verdades prontas quanto Ele tivera um dia. Era criativo, rebelde, original, curioso. Mas por mais insubordinado que fosse, louco segundo algum de seus irmãos, admirava seu Pai a cima de tudo, e sonhava em um dia ser como Ele, colocar-se como igual perante Sua presença, ser tão amado como Ele o era. Levado pela curiosidade acabou descobrindo que o Pai guardava um grande Segredo, em uma caixa muito velha, herança de algum avô desconhecido. Não sossegaria até achá-la e ver o que tinha dentro. Acabou achando a tal caixa. Abriu-a sem que o Pai vesse, e surpreendeu-se mais do que jamais imaginara com o que encontrou lá dentro.

Quando o Pai morreu nem todos os filhos choravam. O Sol se punha no horizonte, ou será que estava nascendo?

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