segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Sem-titulo

Sem-titulo

Eu prefiro os sonhos inventados
À realidade crua e fria,
Simples e mortal,
Que me sustenta e me devora.

Eu prefiro a mentira do teatro
Ao tecido inerte,
Do normal e sem cor,
Que me destrói e me refaz.

Eu prefiro o olhar miope do amor
À verdade do sexo,
Do prazer e da dor,
Que me constrói e me desfaz.

Eu quero o odor das rosas de papel,
Criada pelas minhas mãos,
Sem a sufocante macrocefalia,
De mil químicas e evoluções

Eu quero a música do silêncio,
Tocada no meu corpo,
O som mais selvagem,
Da natureza mais feroz.

Só quero tecer o mundo,
Como o acaso o tece.
Ser meu único e eterno,
ser Deus e criador.

domingo, 15 de agosto de 2010

Amor-e-te

Amor, amo, amo-te, amor-te
Amo-te amor, amo-te amor-te.
Amor, ama-te, amor-te
Ama-te até amor-te,
Amor-te, ama amor,
Amor, amas, amor-te,
Até amor-te do amor?

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Olhos Azuis

Ele me ama. Ou vai me matar.

Eu estava linda quando eu o conheci. Andando sozinha em uma rua escura, de noite. Bêbada, drogada, voltando de uma festa. Um ácido mais forte do que o usual, uma droga deliciosa que um conhecido havia trazido da Europa. Eu estava ótima.Tinha acabado de terminar meu namoro. Pelo mais simples dos motivos: eu não o amava. Por isso estava sozinha, procurando um táxi. Linda.
Ele era um cara legal. Bonito, divertido, me amava. Mas eu não acreditava no amor. Não via nada mais patético do que ficar horas esperando um telefonema, aquele frio na barriga, mandar mil mensagens, um buquê de rosas. O amor é uma tentativa hipócrita de nos ocultarmos de nós mesmos, de negarmos a eterna solidão. Mesmo assim eu o namorara durante um ano. Bem, ele era bom na cama e isso é o que importa.
Meus saltos ecoando na rua. Eu mal vi o homem se aproximando. Estava tonta. Ele era feio, horrível, estava sem camisa, um olhar duro. Ele vai me assaltar. Tento fugir, mas ele me segura, eu grito, mas uma mão me sufoca. Eu vou te estuprar, se tu gritar eu te mato. Eu me debato, eu o arranho. Ele rasga minha blusa Gucci, minha bolsa LV cai no chão. Não tem ninguém ao redor. Sou jogada contra a parede, mãos passam pelo meu corpo, ele puxa meu cabelo, eu choro. Suas mãos calejadas vasculham meu corpo, acham meu sexo. Sinto-me impotente, um grito sufocado, não consigo me mexer. Eu sinto o hálito dele, o cheiro de suor. Me contorço, esperneio, arranho. Mas nada.
De repente, estou livre. Ouço um barulho, o homem está jogado contra a parede. Diante dele, outro homem. Ele o levanta com facilidade, pressiona seu corpo. No escuro não vejo direito, tudo é apenas um borrão. O homem cai sobre o corpo do molestador. Ele se contorce, esperneia, um grito seco. Eu fico parada, no chão, sem entender, um medo terrível se apropriando de cada músculo dolorido, um pavor que sufocava até mesmo a vontade de gritar.
Então, o outro homem levantou. O corpo sem camisa não se mexia. Ele se aproximou de mim devagar. Levantei, tentei falar, perguntar quem ele era. Mas não consegui. Ele me olhou nos olhos. Dois olhos azuis, como o fogo, ardentes. Eu me acalmei, ele se aproxima, cada vez mais perto. Eu tremia. Esticou seu braço, devagar até que sua mão tocou meu rosto. Olhos azuis que queimavam.
Pude ver seu rosto. Branco, e liso, de mármore. Duas pedras brilhando. Um misto de pavor e excitação atravessou meu corpo. O seu toque era frio, suave, uma leve carícia. Seu olhar eternamente no meu. Um sentimento de beleza imensurável tomou conta de mim, nunca vira homem mais belo. Era como se o tempo parasse, o instante se resumiu a aqueles olhos. Minha vida sumiu diante de mim, nada mais existia. Seus lábios estavam vermelhos, sangue escorrendo deles. Sangue do molestador. A beleza dele me penetrava, dominou o meu pânico. Não parava de olhá-lo, não poderia tirar os olhos dele. Obrigada por me salvar, balbuciei. Sem mexer um músculo ele respondeu, eu não te salvei, vim atrás dele. E seus lábios tocaram os meus rapidamente. Senti por um instante o gosto ferroso de sangue.
Ele se foi. Fiquei sozinha, dominada por aquela beleza, meu coração acelerado. Uma paz ardente dentro de mim, um desejo e uma tristeza. Aquele rosto, duas chamas azuis no mármore mais branco.


Estava na casa de uma amiga. Um desfile de vidas medíocres. Conversas vazias. Um tédio intenso, emanando da alma de cada um ali. Monotonia tão intensa, geralmente capaz de nos levar as mais incríveis loucuras, as mais estupendas demonstrações de vida, no sexo, no jeito que dançamos, que rimos e saímos a noite. Maquiando com beleza e luxo o terrível fato de estarmos mortos. Ocos por dentro. Abismos de mentes sem propósito. Viciados em prazer por não ter melhor vício. Drogas e bebida para entorpecer nossos sentidos. Estávamos todos muito loucos. Pelo menos, eu estava. Mais daquele ácido. Muito mais. E alguns outros também. Pura rotina. Alguém vomita no banheiro, uma amiga trepa do meu lado. Essa era a minha vida.
No entanto, naquela noite havia algo de diferente. Sempre sentira que aquele era meu lugar. No luxo, no hedonismo fútil que eu me destinara. Dias e dias, de prazer em prazer. Sem nada que pudesse me preencher. Não tinha fé em nada além disso. Aquilo era a felicidade, e felicidade só poderia ser aquilo. Mas quando eu fechava os olhos, eu sentia o calor daqueles olhos. Não parava de pensar naquele homem, meu salvador. O gosto de sangue ainda estava levemente nos meus lábios. Lembrava-me de cada detalhe do seu rosto. Seu toque parecia ter deixado uma marca no meu rosto, de onde escorria um pulsar ardente e vivo. Vida. Era isso que eu via brilhar nos seus olhos. Vida quente, correndo nas veias.
De repente, senti-me estranha naquele ambiente. As risadinhas, os gritinhos, os vestidinhos, pareceram-me distantes, aquele não era meu mundo. Meu mundo perdeu o sentido naquela rua escura. Sentira um prazer que realmente valia a pena ser sentido. E agora, todo o sentir da minha vida parecia embotado, um véu apenas, que ocultava algo além. Não me sentia mais oca. Aqueles olhos azuis de alguma forma haviam me preenchido. Aquele encontro tinha a textura dos sonhos, eu o queria para mim. Sonhava em encontrá-lo de novo, em beijá-lo. Estava irritava com tudo que me cercava, queria gritar e ir embora dali. Mas eu não podia, estava entre os meus, eu tinha uma imagem a manter. Minha amiga percebeu algo estranho, disse que eu deveria estar tendo uma bad. Mandei-a se foder e fui pegar um drink.
Foi quando um rapaz veio falar comigo, me chamou para o quarto. Seu rosto e corpo eram dignos de uma capa de revista. Mas seus olhos azuis estavam apagados pelas drogas. Senti nojo, repulsa na boca do estômago. Raiva de todos ali. Queria gritar. Joguei meu drink na cara dele, minha amiga ficou puta, mas eu não ligo. Quero que todos eles se fodam.
Cheguei em casa agoniada, fui pro jardim, sentei em um banco de pedra. A lua estava cheia. Sentia-me sufocada, minha vida toda parecia um erro, estava desorientada, tonta. Uma angústia me cortava, eu queria vê-lo, eu queria tocá-lo. Ele me fez ver o que eu era, me mostrou algo novo. Um mundo melhor. Não tão vazio, não tão seco, não tão estéril. Um mundo preenchido por aquela beleza, por algo que agora eu entendia ser o amor. Então, eu fechei os meus e desejei com todas as minhas forças que ele estivesse aqui, que eu pudesse vê-lo mais uma vez.
E quando eu os abri, eu vi a lua sob as árvores, sob as flores. E uma sombra entre elas. Uma sombra que se mexia, se aproximando. Então, ele olhou pra mim, e eu senti o peso do seu olhar esmagar meu coração, meu corpo todo ardendo de um desejo que de tão intenso que era dor. Até que vi seus olhos no escuro e eles tocaram nos meus. Sua mão e seus lábios vieram até mim, de leve.
Eu o abracei. Uma euforia tomou conta de mim, eu o esmaguei entre meus braços, beijei cada milímetro do seu rosto. Passei a mão por seus cabelos escuros e lisos, acariciei a textura dura de seu rosto. Da minha boca escorriam as mais belas promessas de amor, eu te amo, serei sua para sempre, você me mostrou a vida, eu te quero, te amo mais que tudo, nunca me deixe.
Ele impassível, me olhava, na sua boca um sorriso, me encontre no cemitério, na maior das tumbas, amanhã a meia-noite, e você será minha para sempre. Então, ele me beijou, intensamente. Sua língua na minha, o sabor de sangue, apaixonadamente, ele me beijou, me beijou até o mundo desparecer ao meu redor. Dominada por uma beleza tão intensa, uma alegria que transbordava e coloria tudo ao meu redor, um sonho mais doce do que qualquer outro, queria que o mundo acabasse ali para aquele momento ser eterno, e então ele se foi.

Meia-noite. Ansiei por esse momento a cada pensamento, a cada respiração. E eu tinha medo. Ele me ama, ou vai me matar. Beber meu sangue, roubar a minha vida. Mas não era isso que era o amor? Um risco, onde se oferece o próprio sangue esperando que o outro vá oferecer também, e se ele não oferece, você morre. Um jogo de azar onde o prêmio é a vida e a derrota é a morte. E se eu morresse, morreria feliz, pois teria arriscado viver. Viver mais que todos, viver o mistério, o incrível e o belo. O amor. Mas eu estava com medo. Meu terror diluído em desejo, no desejo de tê-lo para sempre comigo, a volúpia da mais sincera e insana paixão. Ele me ama, e serei eternamente feliz. Eu espero.
Entrei no cemitério, o portão estava destrancado. Deixava para trás tudo o que eu era. Eu renasceria. Seria nova, viveria pela primeira vez. Seria amada , amarei de verdade, e o amor será a única verdade. Ou eu vou morrer e poupar o mundo de mais uma patricinha estúpida.
As sombras dos túmulos se projetando sobre o caminho, o cantar de um corvo na distância. A lua está cheia e o céu sem estrelas. Usava meu melhor vestido, branco, liso, de seda, diamantes nos meus brincos e no meu pescoço. Avistei o maior dos túmulos. Todo de mármore, coberto pela prata da lua. Caminhei lentamente para ele. O vento balança meus cabelos, levantava a barra do meu vestido. Meu coração batia acelerado, meus passos eram lentos, era com se estivesse em transe. As sombras abriam espaço para eu passar. Eu era a noiva e a noite o meu cortejo. A Lua, minha sacerdotisa e testemunha. O corvo cantando minha marcha nupcial, o vento é minha dama de honra. Os mortos, os mais adoráveis convidados. O branco, símbolo de minha última virgindade, a virgindade da minha alma. Eu estava pronta.
A porta estava aberta. Ele me olhava, o brilho azul na escuridão. Fitando seus olhos, eu me aproximei, subindo o pequeno lance de escadas até a porta. E lá, diante do olhar do meu amor, sob o luar incandescente, eu tirei minha roupa. Nua, vestida apenas pela prata vinda do céu, e pelas jóias vindas da terra. Assim eu me entregaria a ele para a eternidade. Nua, sem máscaras. Esperei o seu chamado. Ouvi um sussurro correndo pelo meu corpo. Ele me quer. Serei só sua, hoje e para sempre. Eu entrei.
Ele estava sentado no fundo. Levantou-se, andou até mim, e eu até ele. Você veio, ele disse, eu vim, e serei sua mais que para sempre. Ele sorriu, e seus olhos brilhavam ainda mais. Ele me beijou, sua mãos seguraram meu corpo, sua língua brincou com a minha. O mais delicioso dos sabores, o sabor de sangue, senti-o na minha boca, saliva vermelha. Seus braços me envolvendo, contra a parede, sua boca e seus dedos vasculhando meu corpo, beijando-o , lambendo, acariciando. E meu corpo clamava por ele, eu arranhava suas costas, beijava seu pescoço, me entregava a frieza de sua pele. Sedenta, em um frêmito de desespero, eu o agarrava, temia perder aquele toque. Selvagem. Apaixonado.
Sua língua desceu, meus seios, minha barriga, meu sexo. Um prazer mais intenso do que qualquer palavra, a plenitude de um gozo mais do que carnal, a violência de um amor que não mais cabia em mim, queria rasgar, queria morder, agarrei-o com mais força, minha boca gemendo palavras doces, poesia, prosa. Um coro de anjos. O cheiro suave de mil rosas vermelhas, o frio que era cor de neve, e o mundo, ah, o mundo e o tempo, não mais existiam, eu e ele éramos o tudo, e nada mais tinha o direito de existir.
Minhas memórias escorriam com o meu suor, se afastavam de mim. Nunca vivera antes daquele momento, nada do que eu era tinha importância, nunca mais viveria algo além daquilo. Tremia de prazer, eu ardia, minha pele queimava. Como um animal, como um homem, como um deus, ele me desflorava, cada toque, do mais leve ao mais bruto, era da cor do céu, a quintessência do paraíso. Meu corpo todo ofertado a ele, para o seu desfrute e paixão. De olhos fechados eu via a face mais pura da beleza, meus sentidos explodindo ao meu redor como cometas no céu negro.
- Eu abri os olhos e vi os teus, meu amor, nunca antes tão intensos, nunca antes tão belos.
Ele me penetrou e eu me senti renascer em puro êxtase, em um jorro de glória, cada fibra da minha existência vibrando naquela intensidade. Toda a beleza do mundo corria em mim Eu estava no seio do coração selvagem da vida, embebedada pelo seu pulsar, pelo seu sangue mais que vermelho. Era a apoteose do sublime, a quintessência do paraíso, a vida eterna.
Então, veio a dor. Como um raio predizendo uma tempestade, ferindo cada músculo. Misturada ao prazer, ao mais intenso dos prazeres, eu não me importava com ela, que viesse toda a dor do mundo. E ela aumentou, se avolumou e ganhou forma, minha pele gritava ao toque dele, mas eu não poderia pedir para que parasse, eu estava no seio do mais selvagem coração da vida, nada me tiraria de lá, nada. Eu gritava, e ele não ouvia, continuava dentro de mim. Eu o sentia lá, sentia todo o seu ser em comunhão com o meu, me purificando da minha vida torpe, da minha promiscuidade, da minha falta de fé, levando embora meu sofrimento, me oferecendo a glória da eternidade.
Doía e como doía. Cada vez mais, como agulhas, calor visceral vindo de dentro, meus músculos se contraindo, ardendo, minha vagina parecia coroada por brasas, minha pele iria rasgar, não, não pare. O estômago se contorcendo, meu coração batendo mais forte do que meu peito poderia suportar. Suava, tremia, chorava de alegria. Eu te amo, je t’aime, love you, je veux ton amour .Estava sangrando. Senti o sangue quente em minhas mãos. Eu estava sangrando, decorando aquela tumba com a minha cor. Sentindo-me tonta, estava fraca, enjoada. Mas eu não podia parar, ignoraria a dor, ela que se fudesse, eu estou com ele, não há dor no mundo que me impeça, eu sou amor, e é o amor que me fere, não ele, serei dele para sempre, nunca mais minha alma sentirá dor. Mas eu sangrava.
- Morrerei em êxtase, por ti, meu amor.
Então, veio o nada e um clarão branco.

Tensão no ar. Cheiro de hospital. Minha consciência está fraca. Não sei onde estou, o que aconteceu, onde está o meu amor. O êxtase havia passado, meu corpo gemendo, tudo havia passado. Voltara a ser eu. Não conseguia abrir os olhos, estava deitada, parada, mas eu me movia, como em uma maca. Ouvi vozes bem distantes, vozes nervosas, apressadas. Ficaram mais próximas, consigo ouvir algumas palavras...encontrada pelo coveiro...delirando...é sobre mim que estão falando?...hemorragia...batimentos cardíacos instáveis..alucinações...exame de sangue mostrou...ácido...tudo indica um quadro de...overdose

domingo, 18 de julho de 2010

Tirei Férias

Tirei férias da minha alma
Deixei-a trancada,
Em algum canto nebuloso,
Onde ela pode espernear,
E se contorcer a vontade.

E como é assim, uma vida sem alma?
Feliz.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O Acordar

Ele se deitou no lado esquerdo da cama, da mesma forma como se deitara nos últimos vinte anos, quando se mudara para aquele apartamento, jovem e feliz, casado com uma mulher linda e alegre, pela qual ele era totalmente apaixonado. Agora, essa mesma mulher dormia ao seu lado, seus roncos ecoando pelo quarto, sua banha o espremendo na cama. Já há alguns anos se acostumara ao fato de não amá-la mais.
Homem sério, respeitável, de muitos bens e bons ternos. Vivia entre aspas, na polidez letárgica do dia a dia, com a alma cansada para justificar a inércia. Esquecera-se do que era amor. Seu casamento sobrevivia na preguiça, no medo tímido do divorcio, dos seus advogados e da divisão de bens. Por outro lado, não tinha motivos para se separar. Falta de amor não é motivo para separação. Para que se estressar?
No trabalho era um primor, eficiente e bem sucedido. Um burocrata com vocação para burguês. Trabalhava em uma empresa de renome. Seu emprego não o agradava. Igualmente não o desagradava. A diferença principal nessa equação era o contra cheque no final do mês. Seu sonhos? Achava que nunca os tivera. Não almejava sumir mais na vida, estava bom o que tinha. Quem muito quer nada tem.
Esse homem se deitou e dormiu. Uma noite com sonhos banais, não os lembraria como nunca se lembrava. Sonhou com um velho amigo, campos floridos, um carro novo, a cena de um filme água-com-açúcar que vira semana passada. As sete em ponto, seu despertador toca e ele acorda.
Levantou-se, esmerando em não acordar a mulher, que reclamaria, e tomaria café com ele. Seus pés tocaram o chão. Sentiu algo diferente. Relaxado, renovado, como quem sai de uma banheira de hidromassagem. Estranhou, pelo visto dormira bem. Foi ate o banheiro.
Levou um susto. Algo havia mudado ali, algo errado pairava no ar. Olhou ao redor. Tudo no lugar, o vaso, a pia, o jarro de flores de plástico, os produtos de beleza, sabonetes, perfumes, toalhas coloridas. Observou o banheiro, se ajoelhou para olhar de baixo, vasculhou cada canto. Algo mudou aqui, não é o meu banheiro, meu nome está nas inicias da toalha, e esse piso ,eu que escolhi, mas não, esse não é o meu banheiro. Revirou as gavetas, tudo no lugar. Verificou os perfumes, eram os seus ou os dela.
Então , o viu. Parado diante dele, um homem de meia-idade, do outro lado do espelho. Reparou que seu reflexo parecia mais real que ele próprio. Sentia-se etéreo. Não, o mundo é que estava etéreo, tudo possuía uma estranheza, meu deus, o que aconteceu comigo. Molha o resto com água fria. Uma vez, duas. Se olha de novo espelho , e se sente absurdo. Absurdo ter alguém como ele o olhando, o copiando, do outro lado de um pedaço de vidro.A lguém mais real do que ele.
Depois do banho , um novo susto. Sentira a água morna deliciosa sobre seu corpo, sente- a brincando sobre sua pele, acariciando-a. Forma-se uma nuvem no banheiro e ele sente como se o mundo fosse se dissolver nela. Então, lá estava ela.

Era a mulher com que tinha casado. Seu corpo flácido, seus pés –de - galinha e olhar apático. Os cabelos de um louro desbotado, mal cuidados e embolados. Ela estava linda , nunca a vira tão bela. Assustou-se com seu coração batendo mais rápido, assustou-se com a onda de ternura que atravessou sua espinha e ele a beijou. De leve, no rosto, com carinho. Ela recuou,”que que te deu? Você não é de fazer essas coisas”, “eu sou seu marido”. Foi tudo que conseguiu falar e saiu do banheiro.
Sentia-se cada vez mais irreal, seu suco de laranja tinha gosto do vento nos laranjais, e o seu pão tinha gosto de mãos de camponesa, daquelas que batiam os pães em outros tempos. E sua mulher, linda, reluzente. Ela o olhava de um jeito estranho, e sorria as vezes. Na verdade, sorria de escárnio, e já começara a se irritar com o surto de afeto do marido.
Saiu para uma reunião de negócios. No carro, ligou para Helena, sua secretaria. Conversaram, combinaram onde se encontrar. Dirigiu até o motel de sempre, lugar discreto e não muito caro.
Quantos carros, quantos carros, as luzes do sinal, não prestava atenção, quase atropelou um pombo, o sol estava lindo e humilde sobre a copa de uma arvore. Concluiu que estava feliz, não estava cansado. Quantos carros , meu deus, cada carro de uma cor, cada cor em um carro, e ônibus, gordos e flácidos, violentos nos seus barulhos e lá dentro, rostos que o fascinaram por não serem o seu.
Seu carro avançava pelas ruas e as ruas pareciam que recuavam na realidade, o tempo se alargando rapidamente. Viu formas nas fumaças dos carros e de repente parou no vermelho de um sinal. Um menino jogava bolas de tênis ali, ele já o vira antes, já ate mesmo lhe dera uma ou duas moedas.Era magro , estava sem camisa, parecia triste.
E em um súbito esgar, seu coração se expandiu e ele sentiu a sua distancia para aquele menino, um raio de consciência. Sentiu não como uma dor, não com um peso, mas como uma realidade densa e fria. A realidade de sua infância confortável, cercado de brinquedos e amor, das suas viagem para Disney e para a casa de praia. A realidade que era ele estar sentado naquele carro, vestindo um terno , no ar-condicionado, indo encontrar sua amante, enquanto lá fora um menino se esforçava para ganhar um milionésimo do seu salário. A realidade que era ele ser ele e não o menino, o peso da infindável teia de eventos, fatos e acasos , que o colocara ali, dentro do carro, e o menino ali fora. A injustiça essencial dessa desigualdade, como se o universo mesmo estivesse errado, e viu-se culpando o universo, Deus, não acreditava em deus, mas queria acreditar apenas para poder culpá-lo por aquele absurdo. Absurdo, aquilo era absurdo , o menino era absurdo, uma peça fora do lugar no jogo da existência. Seu short barato era absurdo, a mãe gorda e grávida a espreita numa arvore era absurdo, o olha cansado do menino era absurdo, absurdo, aquilo não era real, não era.
O carro de trás buzinou. O sinal está aberto.Acelerou. Sente raiva do menino, ele o tirara mais ainda se seu mundo,sentia-se mais ainda, surreal. Era culpado, para que uns tenham outros tem que não ter, era culpado por aquele menino não ter infância, e não sentia remorso.Sentia raiva pela existência dele lhe impor essa culpa..

Chegou no motel. A secretária o aguardava na suíte, o corpo perfeito enfeitando uma lingerie de renda magnífica, o arfar leve de seu peito enorme. Estava deitada em um sofá, fumando lânguida um cigarro, os cabelos escorrendo por sobre os braços do móvel.
Ficou parado na porta , olhando aquilo. Ele era casado, e tinha uma amante. Uma amante mais jovem e mais bela de sua mulher, que fodia infinitamente melhor, que dizia que o amava ao ponto de ele quase acreditar, uma amante que estava com ele somente pelo dinheiro, e ele que estava com ela somente por sexo, uma tentativa frustrada de sair da monotonia enclausurante que era sua vida, falha, pois ele não a amava, e o sexo por sexo ficou chato, e às vezes nem ele nem ela gozavam, mas fingiam, e como fingiam, ela se contorcendo toda, em uma série de gemidos que pareciam previamente ensaiados, meu deus, eu sou um homem casado, tenho uma mulher, e há quarenta minutos descobri que ainda a amo.
Transaram ali no mesmo no sofá , ele com um vigor súbito, sentindo estremecer a pele ao toque experiente dela, sentindo-se cada vez mais distante a medida que o prazer se aproximava. As paredes do quarto pareciam se afastar, os instantes se atropelavam, as caretas de prazer dela tinham algo de inumano, de animal, de presa e caçador, e quando gozou, seu gozou ardeu na sua alma, algo se quebrou, ele se sentou esbaforido, suando frio.
Nunca sentira remorso por trair sua mulher. Achava algo banal. Agora, também não sentia remorso, mas uma simples estranheza, que saltitava no seu peito, uma grande ironia de escárnio pairando no seu ar. .Porque ele havia visto o amor hoje pela manhã, visto seu rosto tímido espiar pela fresta da porta do mundo, vira o amor em sua mulher, sentiria o amor espreitando dentro de si, vira o amor no seu olhar para o mundo, e então ele compreendeu, porque tudo parecia tão estranho.
Pois agora seu coração era jovem, e podia amar, e a letargia da vida esvanecia, e com ela seu mundo.
Levantou-se e saiu rápido, deixando a mulher com cara de interrogação no quarto, não deu nem um adeus, simplesmente foi e pegou o carro, rápido para o trabalho, queria estar cedo em casa, queria ver sua mulher, queria tocá-la, acreditava, tinha esperança, de que voltaria a amá-la,talvez já a amasse e não soubesse, e o amor lhe sorria nas mínimas coisas, e era pleno novo, como um amanhecer depois de um longo sono.

E conforme assim se sentia, o mundo recuava, as coisas se tornavam mais leves, como que se sorrissem , uma nevoa de paz obscurecia sua vista, e tudo tinha ar de chuva fresca no verão. Via uma beleza jovem em tudo, nas árvores e seus verdes, nas cores dos carros, nas pessoas na rua, e no azul intenso do céu, cada cor faiscando, sorrindo condescendente para seu coração, para seu coração que podia amar. A realidade cada vez mais atrás, cada vez mais distante e menos querida, se assim era se sentir irreal, nunca mais almejaria a realidade.

Estava no escritório. Uma pilha de papéis. Estava levemente assustado, um quê de temor nos móveis ao seu redor. Muitos sólidos, madeiras caras, tudo muito quadrado e impessoal. Propositalmente feito para oprimir, e ele está sufocado. Seu coração se retraia, seus olhos corriam as folhas e paravam, paravam e voltavam. Tinham olhos o espreitando, naquela cadeira de coro, a escrivaninha de jacarandá queria morde-lo.
Pedrinho entrou no escritório. Era um jovem promissor, que havia entrado na empresa há alguns anos. Logo notara seu talento e o fizera crescer na empresa, agora ele ocupava um bom posto,o logo abaixo do seu. Apesar de sua inteligência, Pedrinho era um rapaz ingênuo, nos seus traços um ar de moleque, percebia que ele precisava de um referencia masculina, um braço conselheiro e protetor. Havia sido esse braço durante os últimos anos e Pedrinho nunca o decepcionara. Havia uma amizade paternal entre eles saindo as vezes para tomar um chope, as vezes indo na sua casa para um jantar.
- Chefe, minha mulher ta meio doente, posso sair um pouco mais cedo hoje? Ela ta com um resfriado muito forte, não quero deixar sozinha.
-Claro que pode. Mande melhores para ela.

Estava incomodado. Fez o que tinha que fazer de qualquer jeito. Estava repugnado por aqueles papeis, quantas mãos os haviam tocado, quantas palavras cinzentas , que diziam nada. Uma monotonia jogou uma sombra leve no seu coração, e o medo aumentou. O medo de perder o que viera sentindo. E os moveis, e os moveis olhando pra ele. Estavam o recriminando por ter saído de seu lugar, de sua vida. Os moveis que se danem, mando comprar novos, já há anos que nada muda por aqui.Resolveu sair mais cedo também, vou visitar minha mulher.
No caminho comprou flores, as favoritas dela, o mais lindo buque de rosas brancas. Uma caixa de chocolates em formato de coração, parecida com a que ele dera pra ela no seu primeiro encontro. Estava exuberante, apreciando cada instante daquela nova condição. A nevoa de irrealidade o abraçava e ele a abraçava de volta, feliz. Passou pelo mesmo menino, e deu-lhe uma nota de cinqüenta. Seus olhos pareciam fechados, enxergava o mundo por entre as pálpebras, e nem reparou no susto do menino.Colocou uma musica alta no carro, e cantou junto , sem se importar se alguém estaria ouvindo. Abriu a janela , colocou-se para fora, e cantou. Riu de si próprio.



Chegando em casa, abriu a porta de leve, queira fazer uma surpresa. Deu passos suaves sobre o carpete. A mulher deveria estar no quarto, foi devagarzinho até lá. Seus passos largos e vagarosos como em um sonho. A porta estava fechada, abriu-a, sorrindo.
Então, o mundo recuou, e tudo despareceu, parecia que estava diante de um quadro, que não poderia algo assim existir, as cores de misturam em borrões impressionistas, uma nevoa de sonho cobrindo sua vista, um sopro de beleza intensa, e preciosa, um epíteto artístico que pulsava na sua alma. Viu sua mulher deitada na cama, nua e feliz, com um homem jovem a penetrar-lhe a carne. E ela estava linda, sua banha branca, seus peitos caídos, incrivelmente linda, seus cabelos caindo para trás, suas caretas de prazer e os gemidos por pudor sufocados.O homem como um animal, a segurar-lhe as ancas violentamente, os músculos das costas contraídos e suados, uma forca ancestral emanando de sua boca ávida que vasculhava aquele corpo flácido.Uma obra de arte da natureza, tão bela e esquisita, como um coral das profundezas escuras, como uma pavão em um lixão. Perdeu o fôlego diante daquele espetáculo. Contemplou aquela beleza salvatoriana, incapaz de falar ou se mover, degustando o frêmito de selvageria daquela mulher e daquele homem.E o homem se virou assustado , e ele viu Pedrinho , com os olhos arregalados de pânico, parando o que estava fazendo, surpreendido, assustado. Quis dizer para que continuasse, que não se incomodassem com ele ali, que não o privassem daquela beleza, daquela vida quente. Continuem, não parem, sejam o que são, sintam esse calor, porque assim eu também o sinto. Mas sua boca não se mexia.Pedrinho desajeitado, balbuciava um ruído distante. Sua mulher tentava se recompor, colocar uma roupa ,e gritava, histérica, começava a se debulhar. Não entendia nada do que falavam nem queria entender. Sentiu subitamente que estava com raiva.
Porque haviam parado? Não o achavam digno de vê-los trepando ? Porque interromperam o espetáculo?Não viam que eu queria que continuassem, que queria me embebedar desse grotesco? Pedrinho se aproximou, e com a raiva a vibrar-lhe nos músculos, deu um soco na cara do rapaz, que caiu no chão . Sua mulher gritou histérica. Que voz irritante , meu deus. Então, ele saiu do quarto ,e foi para rua, a pé mesmo, na calçada em frente ao prédio.
Parado na rua, muitos passavam, de um lado para o outro, indo e voltando, o som de uma buzina, um pássaro na arvore, o porteiro do prédio, o som rústico de um ônibus, um motoqueiro que passa veloz, um ambulante que lhe oferece um refrigerante, uma senhora se arrastando em cima de um salto, uma criança com um algodão doce, um bebê que chora, um aleijado que pede uma esmola, um conversível vermelho, um fusca azul velho e sujo, um poste e uma lixeira, um apito e um policial, o céu sob tudo isso e o chão bem abaixo. Em um raio compreendeu tudo.
Estava sonhando.
O mundo se dissolveu naquela névoa de irrealidade. Estou sonhando, nada disso é real, nunca foi, eu que não acordei hoje de manhã. Estou do lado da minha mulher, no lado esquerdo da cama, como sempre estive e sempre estarei. Eu quero acordar, quero acordar, porque de sonhos já me basta, não quero sentir assim ,como se tudo tivesse uma cor ou uma vida, quero a minha vida de volta, quero ser o que sempre fui, quero meu lugar-comum, minha mediocridade, quero tudo de volta.

E não sabia como ia acordar. Andou ate a praia ali perto, e de roupa social mesmo se jogou no mar. Mergulhou e mergulhou, sentindo a água fria, nadando debaixo dela. Mas não acordava. E se eu nunca acordar? Se estiver condenado a esse mundo? Não seja tolo, todo mundo acorda, não existe sono que seja eterno, só a morte, mas se estivesse morto não estaria sonhando. E mergulhou de novo ,de novo , até se cansar e se sentou na areia.
Beliscou-se até se machucar. Nada.Foi parar em um barzinho, tomou um café. Nada. De volta pra praia, lembrou-se de um sonho. Antigo, já o sonhara mais de uma vez. Estava caindo de um prédio bem alto, rápido, via o chão de aproximando, e um medo angustiado no coração. E quando estava para tocar a calçada lá embaixo, acordava. Era isso.
Ainda molhado, pegou o carro. Foi até o escritório, estranharam-no entrar no prédio daquele jeito. O elevador não chegava, olhavam-no assustado. Pegou as escadas mesmo, subiu o prédio todo, até o telhado, quatorze andares, e lá subiu no parapeito e olhou para baixo. Hora de acordar.
Ninguém entendeu o suicídio daquele homem. Parecia um sujeito feliz, bem de vida, bem casado. Sua mulher, a secretária, e Pedrinho choraram no seu enterro. Ela ficou feliz com herança, ele também, a amante o amaldiçoou por não ter deixado nada para ela. Até hoje, não sei se ele chegou a acordar.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

O que há com Ádamo?
Sempre tão belo,
Tão querido, tão invejado,
O que há com Adamo?
Que apenas sonha,
E sonhando, o mundo,
Cospe-lhe na cara.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

"Amor, isto é tudo o que a gente encontrou para alienar a depressão pós-cópula, para justificar a fornificação, para consolidar o orgasmo. Ele é a quintessência do Belo, do Bem, do Verdadeiro, que remodela a sua cara escrota, que sublima a sua existência mesquinha. Bom, eu, eu o rejeito. Pratico e louvo o hedonismo mundano, ele me poupa."
-Lolita Pille