Ele se deitou no lado esquerdo da cama, da mesma forma como se deitara nos últimos vinte anos, quando se mudara para aquele apartamento, jovem e feliz, casado com uma mulher linda e alegre, pela qual ele era totalmente apaixonado. Agora, essa mesma mulher dormia ao seu lado, seus roncos ecoando pelo quarto, sua banha o espremendo na cama. Já há alguns anos se acostumara ao fato de não amá-la mais.
Homem sério, respeitável, de muitos bens e bons ternos. Vivia entre aspas, na polidez letárgica do dia a dia, com a alma cansada para justificar a inércia. Esquecera-se do que era amor. Seu casamento sobrevivia na preguiça, no medo tímido do divorcio, dos seus advogados e da divisão de bens. Por outro lado, não tinha motivos para se separar. Falta de amor não é motivo para separação. Para que se estressar?
No trabalho era um primor, eficiente e bem sucedido. Um burocrata com vocação para burguês. Trabalhava em uma empresa de renome. Seu emprego não o agradava. Igualmente não o desagradava. A diferença principal nessa equação era o contra cheque no final do mês. Seu sonhos? Achava que nunca os tivera. Não almejava sumir mais na vida, estava bom o que tinha. Quem muito quer nada tem.
Esse homem se deitou e dormiu. Uma noite com sonhos banais, não os lembraria como nunca se lembrava. Sonhou com um velho amigo, campos floridos, um carro novo, a cena de um filme água-com-açúcar que vira semana passada. As sete em ponto, seu despertador toca e ele acorda.
Levantou-se, esmerando em não acordar a mulher, que reclamaria, e tomaria café com ele. Seus pés tocaram o chão. Sentiu algo diferente. Relaxado, renovado, como quem sai de uma banheira de hidromassagem. Estranhou, pelo visto dormira bem. Foi ate o banheiro.
Levou um susto. Algo havia mudado ali, algo errado pairava no ar. Olhou ao redor. Tudo no lugar, o vaso, a pia, o jarro de flores de plástico, os produtos de beleza, sabonetes, perfumes, toalhas coloridas. Observou o banheiro, se ajoelhou para olhar de baixo, vasculhou cada canto. Algo mudou aqui, não é o meu banheiro, meu nome está nas inicias da toalha, e esse piso ,eu que escolhi, mas não, esse não é o meu banheiro. Revirou as gavetas, tudo no lugar. Verificou os perfumes, eram os seus ou os dela.
Então , o viu. Parado diante dele, um homem de meia-idade, do outro lado do espelho. Reparou que seu reflexo parecia mais real que ele próprio. Sentia-se etéreo. Não, o mundo é que estava etéreo, tudo possuía uma estranheza, meu deus, o que aconteceu comigo. Molha o resto com água fria. Uma vez, duas. Se olha de novo espelho , e se sente absurdo. Absurdo ter alguém como ele o olhando, o copiando, do outro lado de um pedaço de vidro.A lguém mais real do que ele.
Depois do banho , um novo susto. Sentira a água morna deliciosa sobre seu corpo, sente- a brincando sobre sua pele, acariciando-a. Forma-se uma nuvem no banheiro e ele sente como se o mundo fosse se dissolver nela. Então, lá estava ela.
Era a mulher com que tinha casado. Seu corpo flácido, seus pés –de - galinha e olhar apático. Os cabelos de um louro desbotado, mal cuidados e embolados. Ela estava linda , nunca a vira tão bela. Assustou-se com seu coração batendo mais rápido, assustou-se com a onda de ternura que atravessou sua espinha e ele a beijou. De leve, no rosto, com carinho. Ela recuou,”que que te deu? Você não é de fazer essas coisas”, “eu sou seu marido”. Foi tudo que conseguiu falar e saiu do banheiro.
Sentia-se cada vez mais irreal, seu suco de laranja tinha gosto do vento nos laranjais, e o seu pão tinha gosto de mãos de camponesa, daquelas que batiam os pães em outros tempos. E sua mulher, linda, reluzente. Ela o olhava de um jeito estranho, e sorria as vezes. Na verdade, sorria de escárnio, e já começara a se irritar com o surto de afeto do marido.
Saiu para uma reunião de negócios. No carro, ligou para Helena, sua secretaria. Conversaram, combinaram onde se encontrar. Dirigiu até o motel de sempre, lugar discreto e não muito caro.
Quantos carros, quantos carros, as luzes do sinal, não prestava atenção, quase atropelou um pombo, o sol estava lindo e humilde sobre a copa de uma arvore. Concluiu que estava feliz, não estava cansado. Quantos carros , meu deus, cada carro de uma cor, cada cor em um carro, e ônibus, gordos e flácidos, violentos nos seus barulhos e lá dentro, rostos que o fascinaram por não serem o seu.
Seu carro avançava pelas ruas e as ruas pareciam que recuavam na realidade, o tempo se alargando rapidamente. Viu formas nas fumaças dos carros e de repente parou no vermelho de um sinal. Um menino jogava bolas de tênis ali, ele já o vira antes, já ate mesmo lhe dera uma ou duas moedas.Era magro , estava sem camisa, parecia triste.
E em um súbito esgar, seu coração se expandiu e ele sentiu a sua distancia para aquele menino, um raio de consciência. Sentiu não como uma dor, não com um peso, mas como uma realidade densa e fria. A realidade de sua infância confortável, cercado de brinquedos e amor, das suas viagem para Disney e para a casa de praia. A realidade que era ele estar sentado naquele carro, vestindo um terno , no ar-condicionado, indo encontrar sua amante, enquanto lá fora um menino se esforçava para ganhar um milionésimo do seu salário. A realidade que era ele ser ele e não o menino, o peso da infindável teia de eventos, fatos e acasos , que o colocara ali, dentro do carro, e o menino ali fora. A injustiça essencial dessa desigualdade, como se o universo mesmo estivesse errado, e viu-se culpando o universo, Deus, não acreditava em deus, mas queria acreditar apenas para poder culpá-lo por aquele absurdo. Absurdo, aquilo era absurdo , o menino era absurdo, uma peça fora do lugar no jogo da existência. Seu short barato era absurdo, a mãe gorda e grávida a espreita numa arvore era absurdo, o olha cansado do menino era absurdo, absurdo, aquilo não era real, não era.
O carro de trás buzinou. O sinal está aberto.Acelerou. Sente raiva do menino, ele o tirara mais ainda se seu mundo,sentia-se mais ainda, surreal. Era culpado, para que uns tenham outros tem que não ter, era culpado por aquele menino não ter infância, e não sentia remorso.Sentia raiva pela existência dele lhe impor essa culpa..
Chegou no motel. A secretária o aguardava na suíte, o corpo perfeito enfeitando uma lingerie de renda magnífica, o arfar leve de seu peito enorme. Estava deitada em um sofá, fumando lânguida um cigarro, os cabelos escorrendo por sobre os braços do móvel.
Ficou parado na porta , olhando aquilo. Ele era casado, e tinha uma amante. Uma amante mais jovem e mais bela de sua mulher, que fodia infinitamente melhor, que dizia que o amava ao ponto de ele quase acreditar, uma amante que estava com ele somente pelo dinheiro, e ele que estava com ela somente por sexo, uma tentativa frustrada de sair da monotonia enclausurante que era sua vida, falha, pois ele não a amava, e o sexo por sexo ficou chato, e às vezes nem ele nem ela gozavam, mas fingiam, e como fingiam, ela se contorcendo toda, em uma série de gemidos que pareciam previamente ensaiados, meu deus, eu sou um homem casado, tenho uma mulher, e há quarenta minutos descobri que ainda a amo.
Transaram ali no mesmo no sofá , ele com um vigor súbito, sentindo estremecer a pele ao toque experiente dela, sentindo-se cada vez mais distante a medida que o prazer se aproximava. As paredes do quarto pareciam se afastar, os instantes se atropelavam, as caretas de prazer dela tinham algo de inumano, de animal, de presa e caçador, e quando gozou, seu gozou ardeu na sua alma, algo se quebrou, ele se sentou esbaforido, suando frio.
Nunca sentira remorso por trair sua mulher. Achava algo banal. Agora, também não sentia remorso, mas uma simples estranheza, que saltitava no seu peito, uma grande ironia de escárnio pairando no seu ar. .Porque ele havia visto o amor hoje pela manhã, visto seu rosto tímido espiar pela fresta da porta do mundo, vira o amor em sua mulher, sentiria o amor espreitando dentro de si, vira o amor no seu olhar para o mundo, e então ele compreendeu, porque tudo parecia tão estranho.
Pois agora seu coração era jovem, e podia amar, e a letargia da vida esvanecia, e com ela seu mundo.
Levantou-se e saiu rápido, deixando a mulher com cara de interrogação no quarto, não deu nem um adeus, simplesmente foi e pegou o carro, rápido para o trabalho, queria estar cedo em casa, queria ver sua mulher, queria tocá-la, acreditava, tinha esperança, de que voltaria a amá-la,talvez já a amasse e não soubesse, e o amor lhe sorria nas mínimas coisas, e era pleno novo, como um amanhecer depois de um longo sono.
E conforme assim se sentia, o mundo recuava, as coisas se tornavam mais leves, como que se sorrissem , uma nevoa de paz obscurecia sua vista, e tudo tinha ar de chuva fresca no verão. Via uma beleza jovem em tudo, nas árvores e seus verdes, nas cores dos carros, nas pessoas na rua, e no azul intenso do céu, cada cor faiscando, sorrindo condescendente para seu coração, para seu coração que podia amar. A realidade cada vez mais atrás, cada vez mais distante e menos querida, se assim era se sentir irreal, nunca mais almejaria a realidade.
Estava no escritório. Uma pilha de papéis. Estava levemente assustado, um quê de temor nos móveis ao seu redor. Muitos sólidos, madeiras caras, tudo muito quadrado e impessoal. Propositalmente feito para oprimir, e ele está sufocado. Seu coração se retraia, seus olhos corriam as folhas e paravam, paravam e voltavam. Tinham olhos o espreitando, naquela cadeira de coro, a escrivaninha de jacarandá queria morde-lo.
Pedrinho entrou no escritório. Era um jovem promissor, que havia entrado na empresa há alguns anos. Logo notara seu talento e o fizera crescer na empresa, agora ele ocupava um bom posto,o logo abaixo do seu. Apesar de sua inteligência, Pedrinho era um rapaz ingênuo, nos seus traços um ar de moleque, percebia que ele precisava de um referencia masculina, um braço conselheiro e protetor. Havia sido esse braço durante os últimos anos e Pedrinho nunca o decepcionara. Havia uma amizade paternal entre eles saindo as vezes para tomar um chope, as vezes indo na sua casa para um jantar.
- Chefe, minha mulher ta meio doente, posso sair um pouco mais cedo hoje? Ela ta com um resfriado muito forte, não quero deixar sozinha.
-Claro que pode. Mande melhores para ela.
Estava incomodado. Fez o que tinha que fazer de qualquer jeito. Estava repugnado por aqueles papeis, quantas mãos os haviam tocado, quantas palavras cinzentas , que diziam nada. Uma monotonia jogou uma sombra leve no seu coração, e o medo aumentou. O medo de perder o que viera sentindo. E os moveis, e os moveis olhando pra ele. Estavam o recriminando por ter saído de seu lugar, de sua vida. Os moveis que se danem, mando comprar novos, já há anos que nada muda por aqui.Resolveu sair mais cedo também, vou visitar minha mulher.
No caminho comprou flores, as favoritas dela, o mais lindo buque de rosas brancas. Uma caixa de chocolates em formato de coração, parecida com a que ele dera pra ela no seu primeiro encontro. Estava exuberante, apreciando cada instante daquela nova condição. A nevoa de irrealidade o abraçava e ele a abraçava de volta, feliz. Passou pelo mesmo menino, e deu-lhe uma nota de cinqüenta. Seus olhos pareciam fechados, enxergava o mundo por entre as pálpebras, e nem reparou no susto do menino.Colocou uma musica alta no carro, e cantou junto , sem se importar se alguém estaria ouvindo. Abriu a janela , colocou-se para fora, e cantou. Riu de si próprio.
Chegando em casa, abriu a porta de leve, queira fazer uma surpresa. Deu passos suaves sobre o carpete. A mulher deveria estar no quarto, foi devagarzinho até lá. Seus passos largos e vagarosos como em um sonho. A porta estava fechada, abriu-a, sorrindo.
Então, o mundo recuou, e tudo despareceu, parecia que estava diante de um quadro, que não poderia algo assim existir, as cores de misturam em borrões impressionistas, uma nevoa de sonho cobrindo sua vista, um sopro de beleza intensa, e preciosa, um epíteto artístico que pulsava na sua alma. Viu sua mulher deitada na cama, nua e feliz, com um homem jovem a penetrar-lhe a carne. E ela estava linda, sua banha branca, seus peitos caídos, incrivelmente linda, seus cabelos caindo para trás, suas caretas de prazer e os gemidos por pudor sufocados.O homem como um animal, a segurar-lhe as ancas violentamente, os músculos das costas contraídos e suados, uma forca ancestral emanando de sua boca ávida que vasculhava aquele corpo flácido.Uma obra de arte da natureza, tão bela e esquisita, como um coral das profundezas escuras, como uma pavão em um lixão. Perdeu o fôlego diante daquele espetáculo. Contemplou aquela beleza salvatoriana, incapaz de falar ou se mover, degustando o frêmito de selvageria daquela mulher e daquele homem.E o homem se virou assustado , e ele viu Pedrinho , com os olhos arregalados de pânico, parando o que estava fazendo, surpreendido, assustado. Quis dizer para que continuasse, que não se incomodassem com ele ali, que não o privassem daquela beleza, daquela vida quente. Continuem, não parem, sejam o que são, sintam esse calor, porque assim eu também o sinto. Mas sua boca não se mexia.Pedrinho desajeitado, balbuciava um ruído distante. Sua mulher tentava se recompor, colocar uma roupa ,e gritava, histérica, começava a se debulhar. Não entendia nada do que falavam nem queria entender. Sentiu subitamente que estava com raiva.
Porque haviam parado? Não o achavam digno de vê-los trepando ? Porque interromperam o espetáculo?Não viam que eu queria que continuassem, que queria me embebedar desse grotesco? Pedrinho se aproximou, e com a raiva a vibrar-lhe nos músculos, deu um soco na cara do rapaz, que caiu no chão . Sua mulher gritou histérica. Que voz irritante , meu deus. Então, ele saiu do quarto ,e foi para rua, a pé mesmo, na calçada em frente ao prédio.
Parado na rua, muitos passavam, de um lado para o outro, indo e voltando, o som de uma buzina, um pássaro na arvore, o porteiro do prédio, o som rústico de um ônibus, um motoqueiro que passa veloz, um ambulante que lhe oferece um refrigerante, uma senhora se arrastando em cima de um salto, uma criança com um algodão doce, um bebê que chora, um aleijado que pede uma esmola, um conversível vermelho, um fusca azul velho e sujo, um poste e uma lixeira, um apito e um policial, o céu sob tudo isso e o chão bem abaixo. Em um raio compreendeu tudo.
Estava sonhando.
O mundo se dissolveu naquela névoa de irrealidade. Estou sonhando, nada disso é real, nunca foi, eu que não acordei hoje de manhã. Estou do lado da minha mulher, no lado esquerdo da cama, como sempre estive e sempre estarei. Eu quero acordar, quero acordar, porque de sonhos já me basta, não quero sentir assim ,como se tudo tivesse uma cor ou uma vida, quero a minha vida de volta, quero ser o que sempre fui, quero meu lugar-comum, minha mediocridade, quero tudo de volta.
E não sabia como ia acordar. Andou ate a praia ali perto, e de roupa social mesmo se jogou no mar. Mergulhou e mergulhou, sentindo a água fria, nadando debaixo dela. Mas não acordava. E se eu nunca acordar? Se estiver condenado a esse mundo? Não seja tolo, todo mundo acorda, não existe sono que seja eterno, só a morte, mas se estivesse morto não estaria sonhando. E mergulhou de novo ,de novo , até se cansar e se sentou na areia.
Beliscou-se até se machucar. Nada.Foi parar em um barzinho, tomou um café. Nada. De volta pra praia, lembrou-se de um sonho. Antigo, já o sonhara mais de uma vez. Estava caindo de um prédio bem alto, rápido, via o chão de aproximando, e um medo angustiado no coração. E quando estava para tocar a calçada lá embaixo, acordava. Era isso.
Ainda molhado, pegou o carro. Foi até o escritório, estranharam-no entrar no prédio daquele jeito. O elevador não chegava, olhavam-no assustado. Pegou as escadas mesmo, subiu o prédio todo, até o telhado, quatorze andares, e lá subiu no parapeito e olhou para baixo. Hora de acordar.
Ninguém entendeu o suicídio daquele homem. Parecia um sujeito feliz, bem de vida, bem casado. Sua mulher, a secretária, e Pedrinho choraram no seu enterro. Ela ficou feliz com herança, ele também, a amante o amaldiçoou por não ter deixado nada para ela. Até hoje, não sei se ele chegou a acordar.
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
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Esse texto me envolveu do início ao fim, estou chocada como você escreve bem! Comecei a ler de curiosidade e não consegui parar até terminar! Essa história é ótima, a maneira como você descreveu cada cena, me senti vendo um filme! Ádamo, adorei, escreva mais! De vez em quando passarei por aqui! Beijos!
ResponderExcluirAchei genial. Cada parágrafo me deixou curioso e o final acabou por resumir bem a história do personagem.
ResponderExcluirhaha. Ri no final desse texto. Fantástico! Gostei do tom sarcástico e meio dark q vc deu pra toda a situação do cara. Muito bom msm. Parabéns.
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